segunda-feira, 30 de janeiro de 2017

Entre o saber tradicional e o acadêmico

*Publicado na página Responsabilidade Social, no jornal O LIBERAL de 21/01/2016

BRENDA PANTOJA
Da Redação

A Reserva Extrativista Marinha (Resex) de São João da Ponta, município paraense que fica a 130 km da capital, abrange uma área de 3.400 hectares e as principais atividades econômicas das comunidades são a extração do caranguejo e a pesca. Para as cerca de 400 famílias que tiram de lá o seu sustento, é fundamental conhecer bem o ciclo da maré, pois é ela que dita a rotina. Foi daí que surgiu o nome do projeto “Maré Solidária”, desenvolvido na região pela Universidade da Amazônia (Unama) como uma forma de abrir as fronteiras entre o saber tradicional e o meio acadêmico. 
A iniciativa foi lançada em outubro e conta com a parceria da Associação dos Usuários da Resex (Mocajuim) e do programa “Jovem Protagonista, do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio). O objetivo é promover a responsabilidade socioambiental, trabalhando para capacitar e ampliar o conhecimento dos moradores da reserva. Em quatro meses de existência, já foram realizados cinco módulos e mais de 250 pessoas foram atendidas com serviços prestados por docentes e alunos da Unama.
O professor Igor Charles, coordenador do curso de Geologia e do projeto, explica que as formações ocorrem todo mês e são feitas em eixos temáticos. O cronograma vai até o mês de junho, mas há planos de levar o “Maré Solidária” para outros municípios que tenham populações tradicionais voltadas para a pesca. “A ideia é levar ferramentas para fortalecer a economia local. Ensinar novas técnicas a partir da utilização dos recursos naturais da região, assim como aprender com eles como aplicar na prática o conhecimento teórico da academia”, afirma.
Acadêmicos dos cursos de Geologia, Gastronomia, Moda, Farmácia, Educação Física, Comunicação Social, Nutrição, Estética e Cosmética, Enfermagem, Medicina Veterinária e Ciência da Computação participam do projeto, indo até a cidade para participar das programações, ou já estão montando oficinas para realizarem com a comunidade nos próximos eventos. A criatividade dos universitários e dos professores, aliada ao potencial dos habitantes da Resex, abre as portas para uma série de possibilidades. Uma delas é a oficina de culinária e de nutrição, que mostrou as boas práticas na cozinha e a alimentação rica baseada em peixes, turu, camarão e caranguejo. 
A criação de uma rádio comunitária e de uma rádio web, bem como a gravação de um CD com o grupo feminino de carimbó “Flores do mangue” também são ações em andamento, supervisionadas pelo professor Mário Camarão. Outro trabalho em planejamento é o “Maré Fashion Week”, desfile de moda com os materiais produzidos pelas pescadoras. Todos os trabalhos desenvolvidos ao longo das oficinas serão apresentados no encerramento do semestre, em 29 de junho, em uma culminância que ocorrerá durante a tradicional festividade de São Pedro. 
“Queremos trabalhar mais os assuntos voltados para a economia solidária. As mulheres ainda receberão mais treinamentos sobre moda, gastronomia e empreendedorismo, aprendizados que poderão desenvolver a economia local”, ressalta. O caráter interdisciplinar e a interação direta e respeitosa com o cotidiano das pessoas são o ponto forte da iniciativa, acredita o professor. Ele destaca que toda a atuação do “Maré Solidária” é pautada pelas demandas da Associação Mocajuim, por meio de um conselho deliberativo. “Eles têm bastante autonomia e isso é uma forma de empoderamento, então o fato da Associação ser o nosso canal tem contribuído muito para o êxito. Até pessoas de Curuçá (município vizinho) tem frequentado as ações para conhecer o projeto”, observa.

NOVA AÇÃO
Educação ambiental, resíduos sólidos, esporte, cultura e lazer já foram temas de formações realizadas pelo projeto na Resex. A última foi no dia 12 de dezembro e contou com uma programação bem animada, com sessões de ritmos e slackline para a população. A ação deste mês foi adiada para 23 de fevereiro, em função das férias. O foco será conscientizar e tirar dúvidas sobre saúde, abordando questões do dia a dia laboral dos pescadores de caranguejo. “Um exemplo é o produto utilizado por muitos deles como repelente de mosquitos: o óleo diesel. É uma substância que possui metais pesados e pode causar diversas doenças, como câncer ou afetar o sistema nervoso. É importante levar essas informações para eles”, acrescenta.
Igor pontua que a atividade prática de extensão é essencial na formação profissional dos alunos, ainda mais relevante quando aliada à responsabilidade social. “Nós percebemos que o aluno começa a entender na prática qual a importância da profissão que escolheu e ainda como pode ser um cidadão mais consciente e útil para a sociedade”, afirmou. 
Para ele, as pessoas da comunidade que recebem qualificação se sentem valorizadas e prestigiadas com um trabalho contínuo. “Algo que deixamos bem claro aos alunos é que o projeto não é uma forma de assistencialismo e que nós também temos bastante a aprender com eles”, enfatiza.

Oficinas levam conhecimento e ajudam a fortalecer as comunidades

Presença certa nas oficinas do “Maré Solidária” e do “Jovem Protagonista”, Franciane Rodrigues Coelho mora em São João da Ponta e tem 21 anos. Ela cresceu vendo o pai trabalhar como pescador, profissão que o irmão dela também adotou, e cultivava o desejo de se tornar pescadora, ocupação exercida por muitas mulheres na região. Por causa de um problema na coluna, os planos tiveram que mudar e ela se viu meio sem perspectiva após o término do ensino médio. “Esses dois projetos têm sido uma lição para mim, em vários sentidos. Hoje penso em alternativas que antes nem contemplava. As ações despertaram o interesse de muitos jovens para várias áreas”, comenta.
A formação gastronômica foi uma das preferidas da jovem, que adora cozinhar. O contato com estudantes e professores de Geologia também chamou a atenção de Franciane, que gostaria de seguir uma carreira em que pudesse contribuir para a preservação ambiental. “Essa oportunidade, de aprender sobre todos esses assuntos, é imperdível. A gente sabe que não dá para contar com o poder público, então quero tirar o máximo de proveito desses trabalhos”, diz. Ela espera ver as comunidades fortalecidas a partir das oficinas, pois percebe que os grupos de pescadores e agricultores – estes últimos uma minoria na reserva – têm muita determinação e empenho, mas precisam se organizar melhor.
Ainda segundo ela, o artesanato é uma atividade comum entre as moradoras, embora tenha pouco mercado no município. “A minha mãe é uma das que faz peças de artesanato. Acho que se as mulheres formassem um grupo, uma marca, poderia gerar uma renda maior”, opina. O pai de Franciane, João de Lima Coelho, 53, integra o conselho deliberativo de Mocajuim e representa a classe dos caranguejeiros. Ele considera muito bem-vindas as ações como o projeto da Unama, não só pela capacitação, mas pelos laços afetivos que se formam entre os integrantes e os habitantes.
“Temos entre 50 e 60 jovens participando ativamente do projeto, bem interessados, além do público de outras faixas etárias. Mas especialmente para os jovens é uma chance muito especial, pois ajuda a capacitar essa futura geração que também precisa estar consciente da importância do mangue”, reforça. De fato, 60% do território da Resex é composto por manguezais e ela engloba todos os mangues de São João da Ponta, que têm uma biodiversidade riquíssima. A informação é do gestor da reserva pelo ICMBio, Waldemar Vergara Filho.
Na visão dele, que convive diretamente com as comunidades da área, o “Maré Solidária” surge como uma ponte, preenchendo lacunas e como uma ótima ferramenta de responsabilidade social. “O que o projeto, em parceria com o Jovem Protagonista, proporciona aos moradores é uma forma de revelar a eles espaços que antes estavam ocultos. Além disso, é uma forma da Unama, que leva a Amazônia no nome, cobrar uma atuação mais humana de seus professores e alunos, os futuros profissionais do mercado”, complementa.
Um dos estudantes envolvidos desde o começo é o acadêmico de Geologia Jorge Nadir, 19. Ele está no terceiro semestre e também ajuda na organização das ações. “Conversamos muito com os moradores sobre técnicas de coleta, eles nos ensinaram um método que criaram para reduzir a morte dos caranguejos durante o transporte. Ver a interação deles com o ambiente acrescenta muito como profissional e no desenvolvimento pessoal”, declara. Mesmo quando não há uma oficina sobre a área que ele estuda, Jorge faz questão de visitar a Resex. “É um lugar muito afastado e a gente percebe que faltam opções de atividades. É isso que queremos levar. Pretendo continuar participando das ações e levar esse aprendizado”, conclui.

“Maré Solidária” recebeu convite da Unesco

De acordo com o professor Igor Charles, a possibilidade de dar seguimento ao “Maré Solidária” em outras localidades surgiu a partir de um convite da Unesco no Brasil. “A vontade de fazer o projeto nasceu em fevereiro, durante uma visita do curso de Geologia à Resex. Passamos o resto do ano articulando até que conseguimos botar para rodar em outubro. Nós consideramos um programa piloto, que está dando muito certo. Queremos aprender com nossos erros e aprimorar nossos acertos para estender a atuação”, detalha. 
Um dos destaques do projeto é o apoio ao grupo “Flores do mangue”. O coordenador conta que a intenção de gravar um CD chamou a atenção da Unesco, que garantiu a produção e a distribuição de três mil cópias. Mesmo depois do encerramento, em junho, Igor pretende dar prosseguimento ao projeto com um segundo momento. Ainda neste ano, ele quer trazer moradores da Resex para os campi da Unama, em Belém. “Alguns já vieram e foi uma experiência enriquecedora, principalmente para os jovens. Com isso, queremos ampliar a perspectiva e estimular a continuidade do trabalho”, completa.

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