quinta-feira, 15 de setembro de 2016

"As ilhas de Belém são esquecidas nas políticas públicas"

*Publicado na revista Amazônia Viva, nº 53, janeiro/2016 

Mais da metade do território de Belém - especificamente 65,64% - é composto por ilhas. Ao todo, são 39 ilhas que abrigam cerca de 62,7 mil habitantes e que só foram incluídas oficialmente na cartografia em 2010. 

Os quatro séculos de história da capital paraense não devem ser celebrados apenas no continente, uma vez que os ambientes insulares são fundamentais para entender melhor a cidade e o seu processo de formação. As águas, assimiladas como lugar de travessia, estão associadas às ilhas nelas existentes, comumente percebidas como um lugar de isolamento, de paragem e nem sempre de fixação. Os primeiros registros da área são nesse sentido, em documentações produzida entre os séculos XVII e XIX, que informam a utilização delas para instalação de faróis ou sinaleiras para orientar a navegação, como lugares de pesca, fugas, esconderijos ou moradias de indígenas, escravos africanos e fugitivos.
Estas relações são retratadas no projeto de pesquisa "Belém de águas e ilhas - 400 anos: saberes, usos, memórias e histórias da insularidade", coordenado pela professora Leila Mourão Miranda, doutora em Desenvolvimento Socioambiental, da Universidade Federal do Pará. Na entrevista a seguir, ela fala mais sobre a conexão entre estes espaços.

Estamos celebrando os 400 anos da fundação da capital paraense e não dá para falar da cidade que existe só no continente, ignorando a Belém insular. Como foi o processo de ocupação das ilhas de Belém?
As ilhas de Belém representam o seu pedaço maior, e é ainda, o mais rico em biodiversidade e o mais esquecido e preterido nas políticas públicas. E isto não ocorreu ao acaso. A noção conceitual de ilha traz em si uma carga cultural simbólica e de representações cheia de preconceitos na memória coletiva. A historiografia sobre cidade de Belém a semelhança de relatos de viajantes tem indicado a existência das águas e ilhas contíguas, mas de forma tangencial aos temas específicos de cada investigação, focados essencialmente na história da parte continental. A documentação sobre a cidade e quase toda a cartografia histórica pouco se refere a tais características, concentrando-se em historiar e representar a área continental, ainda que as ilhas tenham sido referenciadas em diferentes aspectos: local de esconderijos, sede de importantes engenhos, indústrias e olarias (Ilha das Onças), locais para segregação e isolamento de doentes (Arapiranga, Tatuoca e Outeiro), prisões e assemelhadas (Cotijuba), mas principalmente como fornecedoras de açaí. Foi somente no final do século XIX que algumas foram sendo povoadas através de projetos de governo de imigração por ele promovida, como Caratateua (Outeiro) e Cotijuba. Outras de menor importância (Combu, Ilha Grande, Periquitos) para o Estado foram ocupadas por migrantes nordestinos, recusados nos projetos governamentais relativos à produção do látex, ou que vinham por conta própria para a Amazônia, sem condições financeiras para chegar aos seringais ou castanhais. No século XX se elaborou uma nova percepção e significado de algumas dessas ilhas como área de turismo e lazer (veraneio) ou de prisões. As ilhas de Outeiro, Mosqueiro, Onças se tornaram locais favoritos de lazer e descanso, para a elite estrangeira e os novos enriquecidos pela extração e comercialização do látex da castanha e das madeiras. Os chalés da orla de Mosqueiro são exemplos da materialização desse processo de ocupação. 

Sem dúvida, é importante conhecer esse processo para entender melhor a relação existente hoje entre os dois territórios. De que forma se dão as relações de trabalho, economia e dependência entre a cidade e as ilhas?
Em relação ao trabalho e suas relações os ilhéus belemitas vivenciaram e vivenciam as que se caracterizam como familiares, baseadas na cooperação nos períodos entre os séculos XVIII e XIX, mas ocorreu a reprodução das relações sociais de trabalho escravagistas vigentes na colônia, nas ilhas onde se instalaram engenhos, olarias, e fábricas, como nas ilhas das Onças, Mosqueiro Cotijuba, entre outras. Após a abolição da escravidão os moradores das ilhas retomaram às relações familiares de trabalho e algumas vezes ao assalariamento ou remuneração por produção no corte e carregamento do palmitos. Ressalta-se que nas últimas três décadas ocorreram mudanças na organização social para a produção, apropriação e comercialização dos produtos nas ilhas, adotando em parte as noções ambientalistas de sustentabilidade e de patrimônio cultural no manejo e cultivo de produtos aromáticos e medicinais, produzidos tradicionalmente e comercializados nas feiras da cidade continental, especialmente na do Ver-o-Peso. Nas primeiras décadas do século XX os ilhéus se organizaram em centros comunitários e associações de moradores sob orientação de técnicos de instituições governamentais e não governamentais, no sentido de defender seus interesses socioeconômicos e culturais. Em face a novas demandas sobre o território e trabalhadores das ilhas, surgiram propostas de instalação de empresas produtoras de alimentos, turismo e de produção de insumos para a indústria de cosméticos. Por estes contratos, os produtores são autônomos e sem vínculos empregatícios com as empresas contratantes e produzem a partir de aspectos materiais e simbólicos – o saber e o fazer – sob novas exigências tecnológicas, reconfigurando suas tradicionais relações familiares, de amizade, de compadrio, de trabalho e de lazer, assegurando sua sobrevivência e sua inserção no mercado globalizado.

A construção da identidade do belenense é vista de forma diferente entre os moradores das ilhas? Como é a representação deste ambiente pela população local? E pelo poder público?
As políticas oficiais de governo tem representado os sujeitos insulares como rurais e os projetos relacionados as ilhas são realizados como tentativa de inseri-los na civilidade urbana de Belém. Os moradores das ilhas vivenciam as experiências da cidade em quase todos aspectos de suas vidas, o que fazem deles também belemitas, ainda que estruturem e organizem suas vidas e sociedade em função das águas e das insularidades. Elas são os seus caminhos e lugares de territorialidade. As ilhas, neste sentido, são os lugares de morar, de viver, de lazer, de produzir e reproduzir socialmente. Em termos da memória coletiva, simbolicamente as ilhas e seu entorno – as águas – significam e representam o seu lar. E na cidade continental e insular se entrecruzam os sujeitos e as relações sociais de produção e reprodução, buscando uma simbiose entre rural e urbano, natureza e cultura, que as políticas públicas não dão conta. Acrescentamos também que os ilhéus vêm ressignificando suas identidades ao estabelecerem as parcerias com as empresas, na possibilidade de se mostrarem sujeitos com garantias de direitos, no limite da significação passado-presente, na memória manipulada entre rural e urbano, inserindo-se como moradores das ilhas na cidade.  

O projeto, ao recuperar a história socioambiental das ilhas e a interação com a história da sociedade continental, busca dar uma perspectiva mais ampla sobre a importância desta região e valorizar suas contribuições?
Os resultados da pesquisa tem apontado as percepções públicas e privadas sobre as ilhas e águas que contornam a parte continental da cidade e podem indicar as possibilidades de inflexões na cultura, na política e nas ações públicas e privadas na perspectiva de construirmos outa percepção cultural e econômica. Uma outra cultura que contribua para a inserção das ilhas e seus habitantes na cidade, resguardando a especificidade de cada modo de viver ao evidenciar no debate a importância que as ilhas e seus habitantes têm, por exemplo, no abastecimento do açaí, de plantas aromáticas e medicinais, ou na oferta de espaço para o turismo, na manutenção manejada das coberturas florestais para melhorar o clima da cidade continental, entre outras possibilidades. Ainda são tímidas as ações práticas, mas espera-se que num futuro próximo a cidade de Belém seja pensada e não só representada com suas ilhas e águas na elaboração de sua história e demais ciências, mas como objeto de políticas públicas.

2 comentários:

  1. Afinal, quais são as 39 ilhas que formam o território de Belém?

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    1. Olá. O Anuário Estatístico do Município de Belém - 2010 discrimina as ilhas de Belém, algumas sem nome. Segue o link: http://www.belem.pa.gov.br/app/ANUARIO_2010/1_01_caracterizacao%20do%20territoriox.pdf

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