quinta-feira, 29 de setembro de 2016

Turismo à moda marajoara

*Publicado na revista Amazônia Viva, nº 54, fevereiro/2016 
*Terceira colocada na categoria Impresso do Prêmio de Jornalismo em Turismo 2016

     As canoas saem da Praia do Pesqueiro, em Soure, em direção a um pontão de areia e, poucos minutos depois, chegam à Vila do Céu. Logo na entrada, uma placa indica o restaurante “Brisa do Céu”, construído em um esforço conjunto pela comunidade de pescadores. Os moradores perceberam que os viajantes que saíam da rota oficial do turismo na Ilha e chegavam até o local, não encontravam opções de alimentação e hospedagem, tendo que voltar para o Pesqueiro. Depois que o estabelecimento, erguido com uma estrutura de taboca e palha, foi inaugurado, a renda arrecadada tem sido usada para promover melhorias na vila e o plano é abrir uma pequena pousada ao lado.              Os visitantes que costumam explorar a vila, com suas coloridas casas de madeira e uma rotina muito diferente das grandes cidades, são aqueles interessados em turismo de base comunitária. A preservação ambiental é um dos fatores que chama a atenção desse público, mas o que realmente encanta é o contato com o acolhedor povo amazônico.  “Esse modelo de turismo traz a parte humana da viagem, para que as pessoas conheçam a dinâmica e a diversidade da região através de seus habitantes. É importante que o brasileiro explore a Amazônia para aprender a valorizá-la”, afirma Maria Teresa Junqueira, gerente da operadora de viagens Turismo Consciente.
     Natural de São Paulo, Maria Teresa começou a desbravar a Amazônia há 15 anos com o projeto Vaga Lume, que implanta bibliotecas comunitárias em localidades rurais e ribeirinhas. A partir da interação com as comunidades do Arquipélago, ela participou da montagem do roteiro VEM – Viagem Encontrando Marajó, em 2007, em parceria com a Associação de Mulheres da Vila do Pesqueiro. A experiência inclui atividades como coleta de turu, pesca artesanal, passeio no mangue e pernoite nas comunidades. 
     O projeto recebeu financiamento do governo federal, possibilitando a capacitação de muitos moradores. Eles se dividiram entre os que participaram de oficinas gastronômicas, para resgatar a culinária tradicional, de guias turísticos e anfitriões, que formou os responsáveis por coordenarem os grupos e organizarem os passeios, e de hospedagem, para aqueles que escolheram abrir as casas para os turistas. Embora o projeto esteja oficialmente parado há pelo menos cinco anos, por dificuldades de articulação junto à Associação, os agentes do turismo comunitário continuam trabalhando na área, através de parcerias com hotéis e agências de viagem.
      É o caso da Lucileide Borges, 41, que tem várias funções na comunidade do Pesqueiro, entre elas a de professora e a de guia do passeio de extração do turu. A tarefa é desempenhada ao lado do esposo, e sob os olhares curiosos e desconfiados dos visitantes, eles pegam os moluscos no mangue, fazem a limpeza e a degustação.  “A procura por esses roteiros tem crescido e o diferencial é que é um modelo que promove a preservação ambiental, porque os turistas conhecem melhor a natureza local, e são criados laços entre quem vem de fora e a gente. Não é um trabalho impessoal”, diz. 
    Ainda segundo ela, a renda gerada por essa atividade complementa o orçamento de muitas famílias. “Esse turismo envolve os parceiros das comunidades de pescadores, beneficiando gente que, muitas vezes, só tem o bolsa família de renda fixa. A consciência com o meio ambiente também aumenta entre os moradores, que passaram a se preocupar mais com destino adequado do lixo e até com a poluição sonora”, completa. Maria Teresa ressalta que o turismo de base comunitária não pode transformar a atividade econômica de uma localidade, funcionando melhor como uma renda extra. “Há uma linha tênue: até onde dá para a gente ir para que as pessoas não deixem de desenvolverem as ocupações tradicionais? Se abandonam isso e o fluxo de turistas cessa ou diminui, a comunidade sofre um declínio”, pontua. 
      Percorrendo as praias, vilas, fazendas e rios de Soure, Ana Cristina Penante, 38, fala com muita segurança sobre as características da gente, dos animais e das plantas marajoaras. Ela é uma atuante promotora do turismo regional no Marajó, com 15 anos de experiência. Para ela, o impacto na vida da comunidade é visível, mesmo com poucos investimentos no setor turístico. “Quando começamos a hospedar turistas na vila, só podia recebê-los quem tinha banheiro dentro de casa, com fossa séptica. A partir daí, mesmo quem não precisava seguir essa exigência, fez questão de adaptar o banheiro e hoje praticamente todas as casas da vila estão adequadas”, conta.
    Ela comenta que o turismo, especialmente o que busca o envolvimento com as populações tradicionais da Ilha, esbarra em dificuldades de comunicação, transporte e incentivo. “Nas vilas do Pesqueiro, Céu e Caju-una, por exemplo, só pega o celular rural e se tiver antena boa. Para chegar a alguns desses locais, tem que ter autorização para passar por dentro de fazendas e o transporte aqui na ilha tem um custo muito alto. O poder público pouco divulga e informa os turistas sobre iniciativas de base comunitária. O Marajó tem um enorme potencial turístico, que pode beneficiar muito os habitantes, mas falta as nossas autoridades perceberem isso para a gente conseguir crescer mais”, acrescenta.
      Outro grande efeito de trabalhar com os moradores locais, de acordo com Ana Cristina, é ver o fortalecimento da articulação e do empoderamento. Maria Teresa destaca que o “Brisa do Céu” é um ótimo exemplo de “inteligência social”. De trás do balcão, sempre sorridente e sentindo prazer em receber bem os clientes, a gerente Joelma Sousa, 29, fez questão de registrar no celular imagens do estabelecimento lotado de visitantes que tinham chegado de São Paulo. Os turistas almoçaram peixe frito com açaí, ao som de bregas marcantes e de frente para a praia, com um vento incessante que faz jus ao nome do restaurante. 
      “A nossa ideia é ampliar e abrir uma pousada, construindo alguns quartinhos. A comunidade fica afastada e é basicamente familiar, mas nos reunimos e decidimos oferecer opções para os visitantes comerem e se hospedarem”, reforça. O restaurante foi construído há menos de um ano, erguido e equipado a partir da coleta e da mão de obra da comunidade.  “O lucro é usado em melhorias para a comunidade, como a revitalização de áreas de uso comum, na sede da associação de moradores, na igreja, no colégio. Esse sistema tem funcionado muito bem e só tem benefícios a trazer”, avalia. 
        Além da interação com a natureza, o roteiro montado por Maria Teresa costuma incluir a visita ao ateliê do escultor ceramista Ronaldo Guedes, 40, que mostra um pouco da arte marajoara. No bairro do Pacoval, onde fica o espaço, ele também promove ações ambientais e culturais paras as crianças. “É um trabalho voltado para a cultura, mas também de consciência política, para que as pessoas daqui se apropriem do seu território e entendam o quanto esse aspecto histórico da arte representa para o nosso desenvolvimento”, defende.
       Para o grupo de cerca de 20 turistas de São Paulo, que viajaram com os filhos pela Turismo Consciente, a oficina de cerâmica foi um dos momentos mais especiais, pois eles puderam produzir as próprias peças, que depois foram ao forno para ficarem prontas. “O turismo de base comunitária é um elemento importante para a gente porque há uma troca de experiências e contribui para a nossa renda. Ensinar e aprender com a cultura dos outros sempre é enriquecedor, ainda mais pela cerâmica marajoara ter relação direta com a pré-história da Amazônia”, frisa. 

quinta-feira, 15 de setembro de 2016

"As ilhas de Belém são esquecidas nas políticas públicas"

*Publicado na revista Amazônia Viva, nº 53, janeiro/2016 

Mais da metade do território de Belém - especificamente 65,64% - é composto por ilhas. Ao todo, são 39 ilhas que abrigam cerca de 62,7 mil habitantes e que só foram incluídas oficialmente na cartografia em 2010. 

Os quatro séculos de história da capital paraense não devem ser celebrados apenas no continente, uma vez que os ambientes insulares são fundamentais para entender melhor a cidade e o seu processo de formação. As águas, assimiladas como lugar de travessia, estão associadas às ilhas nelas existentes, comumente percebidas como um lugar de isolamento, de paragem e nem sempre de fixação. Os primeiros registros da área são nesse sentido, em documentações produzida entre os séculos XVII e XIX, que informam a utilização delas para instalação de faróis ou sinaleiras para orientar a navegação, como lugares de pesca, fugas, esconderijos ou moradias de indígenas, escravos africanos e fugitivos.
Estas relações são retratadas no projeto de pesquisa "Belém de águas e ilhas - 400 anos: saberes, usos, memórias e histórias da insularidade", coordenado pela professora Leila Mourão Miranda, doutora em Desenvolvimento Socioambiental, da Universidade Federal do Pará. Na entrevista a seguir, ela fala mais sobre a conexão entre estes espaços.

Estamos celebrando os 400 anos da fundação da capital paraense e não dá para falar da cidade que existe só no continente, ignorando a Belém insular. Como foi o processo de ocupação das ilhas de Belém?
As ilhas de Belém representam o seu pedaço maior, e é ainda, o mais rico em biodiversidade e o mais esquecido e preterido nas políticas públicas. E isto não ocorreu ao acaso. A noção conceitual de ilha traz em si uma carga cultural simbólica e de representações cheia de preconceitos na memória coletiva. A historiografia sobre cidade de Belém a semelhança de relatos de viajantes tem indicado a existência das águas e ilhas contíguas, mas de forma tangencial aos temas específicos de cada investigação, focados essencialmente na história da parte continental. A documentação sobre a cidade e quase toda a cartografia histórica pouco se refere a tais características, concentrando-se em historiar e representar a área continental, ainda que as ilhas tenham sido referenciadas em diferentes aspectos: local de esconderijos, sede de importantes engenhos, indústrias e olarias (Ilha das Onças), locais para segregação e isolamento de doentes (Arapiranga, Tatuoca e Outeiro), prisões e assemelhadas (Cotijuba), mas principalmente como fornecedoras de açaí. Foi somente no final do século XIX que algumas foram sendo povoadas através de projetos de governo de imigração por ele promovida, como Caratateua (Outeiro) e Cotijuba. Outras de menor importância (Combu, Ilha Grande, Periquitos) para o Estado foram ocupadas por migrantes nordestinos, recusados nos projetos governamentais relativos à produção do látex, ou que vinham por conta própria para a Amazônia, sem condições financeiras para chegar aos seringais ou castanhais. No século XX se elaborou uma nova percepção e significado de algumas dessas ilhas como área de turismo e lazer (veraneio) ou de prisões. As ilhas de Outeiro, Mosqueiro, Onças se tornaram locais favoritos de lazer e descanso, para a elite estrangeira e os novos enriquecidos pela extração e comercialização do látex da castanha e das madeiras. Os chalés da orla de Mosqueiro são exemplos da materialização desse processo de ocupação. 

Sem dúvida, é importante conhecer esse processo para entender melhor a relação existente hoje entre os dois territórios. De que forma se dão as relações de trabalho, economia e dependência entre a cidade e as ilhas?
Em relação ao trabalho e suas relações os ilhéus belemitas vivenciaram e vivenciam as que se caracterizam como familiares, baseadas na cooperação nos períodos entre os séculos XVIII e XIX, mas ocorreu a reprodução das relações sociais de trabalho escravagistas vigentes na colônia, nas ilhas onde se instalaram engenhos, olarias, e fábricas, como nas ilhas das Onças, Mosqueiro Cotijuba, entre outras. Após a abolição da escravidão os moradores das ilhas retomaram às relações familiares de trabalho e algumas vezes ao assalariamento ou remuneração por produção no corte e carregamento do palmitos. Ressalta-se que nas últimas três décadas ocorreram mudanças na organização social para a produção, apropriação e comercialização dos produtos nas ilhas, adotando em parte as noções ambientalistas de sustentabilidade e de patrimônio cultural no manejo e cultivo de produtos aromáticos e medicinais, produzidos tradicionalmente e comercializados nas feiras da cidade continental, especialmente na do Ver-o-Peso. Nas primeiras décadas do século XX os ilhéus se organizaram em centros comunitários e associações de moradores sob orientação de técnicos de instituições governamentais e não governamentais, no sentido de defender seus interesses socioeconômicos e culturais. Em face a novas demandas sobre o território e trabalhadores das ilhas, surgiram propostas de instalação de empresas produtoras de alimentos, turismo e de produção de insumos para a indústria de cosméticos. Por estes contratos, os produtores são autônomos e sem vínculos empregatícios com as empresas contratantes e produzem a partir de aspectos materiais e simbólicos – o saber e o fazer – sob novas exigências tecnológicas, reconfigurando suas tradicionais relações familiares, de amizade, de compadrio, de trabalho e de lazer, assegurando sua sobrevivência e sua inserção no mercado globalizado.

A construção da identidade do belenense é vista de forma diferente entre os moradores das ilhas? Como é a representação deste ambiente pela população local? E pelo poder público?
As políticas oficiais de governo tem representado os sujeitos insulares como rurais e os projetos relacionados as ilhas são realizados como tentativa de inseri-los na civilidade urbana de Belém. Os moradores das ilhas vivenciam as experiências da cidade em quase todos aspectos de suas vidas, o que fazem deles também belemitas, ainda que estruturem e organizem suas vidas e sociedade em função das águas e das insularidades. Elas são os seus caminhos e lugares de territorialidade. As ilhas, neste sentido, são os lugares de morar, de viver, de lazer, de produzir e reproduzir socialmente. Em termos da memória coletiva, simbolicamente as ilhas e seu entorno – as águas – significam e representam o seu lar. E na cidade continental e insular se entrecruzam os sujeitos e as relações sociais de produção e reprodução, buscando uma simbiose entre rural e urbano, natureza e cultura, que as políticas públicas não dão conta. Acrescentamos também que os ilhéus vêm ressignificando suas identidades ao estabelecerem as parcerias com as empresas, na possibilidade de se mostrarem sujeitos com garantias de direitos, no limite da significação passado-presente, na memória manipulada entre rural e urbano, inserindo-se como moradores das ilhas na cidade.  

O projeto, ao recuperar a história socioambiental das ilhas e a interação com a história da sociedade continental, busca dar uma perspectiva mais ampla sobre a importância desta região e valorizar suas contribuições?
Os resultados da pesquisa tem apontado as percepções públicas e privadas sobre as ilhas e águas que contornam a parte continental da cidade e podem indicar as possibilidades de inflexões na cultura, na política e nas ações públicas e privadas na perspectiva de construirmos outa percepção cultural e econômica. Uma outra cultura que contribua para a inserção das ilhas e seus habitantes na cidade, resguardando a especificidade de cada modo de viver ao evidenciar no debate a importância que as ilhas e seus habitantes têm, por exemplo, no abastecimento do açaí, de plantas aromáticas e medicinais, ou na oferta de espaço para o turismo, na manutenção manejada das coberturas florestais para melhorar o clima da cidade continental, entre outras possibilidades. Ainda são tímidas as ações práticas, mas espera-se que num futuro próximo a cidade de Belém seja pensada e não só representada com suas ilhas e águas na elaboração de sua história e demais ciências, mas como objeto de políticas públicas.