quarta-feira, 31 de agosto de 2016

Felicidade estampada na cara

 *Publicado na revista Amazônia Viva, nº 35, julho/2014 
 Os brincantes do Arrastão do Pavulagem são das mais variadas idades, mas com uma coisa em comum: a alegria de fazer parte de uma identidade cultural própria da Amazônia

A profusão de cores e a energia da multidão que acompanha o Arrastão do Pavulagem são testemunhadas do alto das pernas de pau pelo ator circense Marcos Augusto Machado, de 24 anos, na foto da página anterior, que abre esta reportagem. “É uma visão privilegiada e a gente fica em destaque. A reação das crianças é muito legal. Até os adultos ficam deslumbrados”, conta ele, que integra o cortejo há sete anos. Foi onde descobriu a arte do circo, “uma paixão que começou no Arraial”. Ele garante que usar as pernas postiças já é um costume, mas mesmo assim passa por duas semanas de ensaios diários para sair nos desfiles. “Comecei no grupo da dança, mas a perna de pau é mesmo onde gosto de estar. Aqui a gente também canta e dança e faz tudo isso no alto, o que é muito mais difícil e divertido”, diz. 

O Arrastão leva até 20 mil pessoas para as ruas de Belém durante a quadra junina. A estimativa é da organização do evento, realizado pelo Instituto Arraial do Pavulagem, que desde o ano passado conta com o patrocínio da Vale, por meio da Lei Rouanet, e apoio cultural da Prefeitura de Belém e TV Liberal. 
Além de fortalecer a cultura regional, o festejo tem um significado importante no romance da advogada Ana Paula Braga, 25 anos, e do educador físico Sanclayton Diniz, de 31. No ano passado, o casal posou com o estandarte de Santo Antônio para uma foto e o padroeiro dos namorados ajudou a uni-los. Este ano, eles voltaram para um novo registro do romance, já com data marcada para o casamento. “E ainda tem o Vítor, nosso bebê, na barriga. Estou com quatro meses de gestação. O Arraial é mesmo abençoado”, acrescenta a noiva.
Sanclayton lembra que a manifestação cultural sempre fez parte da vida deles e continuará fazendo. “Antes mesmo de nos conhecermos, cada um vinha para cá com a sua família. Mesmo sem saber, nos cruzamos em vários arraiais. E no próximo ano será especial, com o nosso filho no colo”, afirma. Ana
Paula acredita que a música é o grande diferencial do Pavulagem. “O ambiente, no geral, é muito bom, mas o som, a música contagia todo mundo, desde a criança até o idoso”, destaca a advogada.
Prova do que Ana Paula diz é a dedicação de Arthur Rodrigues, de apenas sete anos. Ele frequenta o Arrastão desde os quatro anos. “Mas disso eu não me lembro, é minha mãe quem conta”, se adianta à reportagem. Porém, esse pouco tempo de participação foi o suficiente para que o garoto fosse homenageado na blusa do Instituto. “Eu sou esse menininho dançando com o boi”, aponta na camisa
da mãe. Em todo cortejo, ele faz questão de chegar perto e bailar com o boi, em um momento de pura alegria. “Quando eu crescer quero ser o ‘tripa’”, anuncia, referindo-se ao responsável por vestir a fantasia e dar vida’ ao boi. “Começou espontaneamente, coisa de criança. Até ofereceram para ele sair de vaqueiro, mas ele não quis, só aceita se for de boi. Ele não falta a nenhum arrastão e é tão especial para o Arthur, que ele chora quando acaba a festa”, relata a mãe, Andressa Rodrigues.
O ator e arte-educador Emerson de Souza, de 36 anos, é um dos vaqueiros que interagem com o boi durante o cortejo, em uma atuação que encanta a todos os brincantes. “A coreografia e a encenação começa a ser montada 15 dias antes dos arrastões, pelos quatro vaqueiros, que tem a função de protegerem e serem guardiões do boi”, explica.
Integrante do Arraial desde 2004, ele também ministra oficinas de perna de pau, esforçando-se para levar para as ruas um espetáculo interativo. “O cortejo em si é um teatro vivo que chama a atenção pela movimentação e pelas brincadeiras, além de valorizar a cultura paraense”, resume. A mesma animação das crianças brilha nos olhos da aposentada Elizete Rocha, de 69 anos, que abre o cortejo orgulhosa, levando o estandarte de São João. “O Arrastão é uma das poucas festas populares que se mantém forte. E assim vai continuar se depender de mim, nem que eu tenha que vir de cadeira de rodas”, assegura. Ela já tem 12 anos no Instituto, ambiente onde encontra respeito e alegria. “Comecei por curiosidade, queria alguma atividade para ocupar o tempo e aí não parei mais. Aqui me sinto muito viva, no Pavulagem a idade não importa”, completa, preparando-se para mais um Arrastão por Belém.

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quarta-feira, 10 de agosto de 2016

Consciência crítica no canteiro de obras

*Publicado na página Responsabilidade Social, no jornal O LIBERAL de 19/11/2015

BRENDA PANTOJA
Da Redação

Democracia, cidadania e a estrutura do Estado brasileiro. Esses três tópicos vêm sendo amplamente discutidos em um canteiro de obras no bairro do Icuí-Guajará, em Ananindeua. Nesse ambiente de trabalho, o debate vai além das rodas de conversas informais sobre o cenário político ou a crise econômica do País, pois é realizado durante o Curso de Iniciação Política, gerando um entendimento mais amplo e formando cidadãos multiplicadores. A iniciativa é da empresa Síntese Moradia, que selecionou 58 funcionários, fornecedores e moradores da comunidade para assistirem às aulas. 
A turma participará do segundo encontro amanhã e encerrará o ciclo na próxima sexta-feira. A atividade é realizada sempre de 8h às 12h30, dentro do expediente. A diretora executiva Lecy Garcia garante que é a primeira vez que um curso nesse formato é ministrado para colaboradores da indústria da construção civil em Belém. O objetivo é oferecer conteúdo de introdução às questões políticas, de forma suprapartidária, e fortalecer a formação cidadã do corpo de trabalhadores, composto em quase 70% de habitantes das comunidades próximas. 
O resultado, acreditam os organizadores, será visto na prática, a partir de uma mudança de postura e de articulação nos moradores do bairro. “Pesquisas mostram que três meses depois das eleições, 60% das pessoas não lembram mais em quem votaram para cargos como os de vereadores, deputados estaduais e federais. É muito importante criar no eleitor uma provocação, instigá-lo a ponto de que ele não esqueça quem elegeu e se lembre de cobrar esse político”, afirma Rodrigo Garcia, diretor de Gestão e Estratégia da empresa.
A ideia surgiu no último período eleitoral, quando uma obra estava sendo finalizada no município de Capanema, e vários funcionários pediram aos seus encarregados que indicassem em quem deveriam votar. “Isso não é bom, pois abre brecha para manipulação e transfere a responsabilidade do cidadão. Nossa meta com esta ação é que eles construam autonomia de escolha, de consciência crítica. O voto é inalienável, é seu, a responsabilidade é de todos nós para transformar o País”, reforça. 
O encarregado de obras Ivaldo Tadeu Caldas, 51, é um dos participantes e já parou para reavaliar sobre muitos pontos na primeira aula. Para ele, saber como funciona o sistema é fundamental para cobrar mudanças, tais como reduzir “as regalias dos políticos”. Apesar de otimista e confiante no desenvolvimento do Brasil, ele se diz realista. “Vai ser um processo lento. Para melhorar a situação, a gente tem que cumprir o nosso papel também, tem que ter entendimento sobre as leis do país”, pontua. O curso, nesse sentido, é classificado por ele como “necessário e proveitoso”. 
Ivaldo observou que o primeiro momento de discussão deixou muitos “surpresos”. “Ao poucos, vai abrindo a mente para uma visão diferente, uma interpretação que nem sempre estamos acostumados. Nos ajuda a perceber a responsabilidade em relação aos que colocamos no poder para representar o povo”, pondera. A preocupação com a conscientização do filho está entre as reflexões que ele leva do curso. Em vez de mandar o filho votar em determinado candidato, vai conversar com o rapaz e incentivá-lo a decidir sozinho. 
Ele ressalta que as aulas sobre cidadania vão chamar a atenção dos operários sobre a importância dos deveres e também dos direitos. Ivaldo aponta um problema comum na construção civil, que é o trabalho informal. “Para se aposentar, o trabalhador da área tem que ter 35 anos de trabalho comprovados, mas muitos começam irregularmente, sem assinar carteira, e não percebem o prejuízo que isso pode causar”, diz. O reflexo também poderá ser visto na mobilização da comunidade, segundo ele, que se trata de uma área onde as políticas públicas demoram muito a chegar. “Quando a obra começou, tivemos que mandar furar um poço artesiano porque ainda não tinha abastecimento. Se houver organização e planejamento, e uma população consciente dos seus direitos, eles conseguem melhorias”, completa. 
A proposta das aulas não foi novidade nenhuma para o cientista político Humberto Dantas, formado pela Universidade de São Paulo (USP) e com mais de 300 turmas formadas em cursos livres de formação política. Contudo, esta foi a primeira vez que ele realizou o trabalho em um canteiro de obras. Segundo ele, as palestras são feitas, predominantemente, para um público de jovens estudantes de escolas públicas na periferia de São Paulo. De acordo com Dantas, há forte demanda também de fábricas, empresas, gerentes de banco e organizações públicas.
“É um trabalho necessário para os mais de 155 milhões de eleitores do país. Quando se trata de trazer para este ambiente, estamos lidando com agentes responsáveis por uma política pública, de habitação. Eles constroem moradias e são agentes dessa política”, destaca. Dantas amplia, frisando que o debate precisa ser feito por todos os cidadãos, para que todos tenham consciência de como são feitas as leis. Ele explica que o curso segue um formato simples, com palestras e desafios propostos aos participantes. As atividades contam com exibição de documentários, divisão em grupos e até ações práticas na comunidade. 
A culminância do curso será com uma ação dos funcionários e colaboradores, que deverão observar o que está errado no entorno da obra e pensar em formas de melhorar a realidade local. Eles poderão entrar em contato com uma associação do bairro e promover um diálogo para que os grupos saiam a campo, orientados por representantes para uma percepção dos principais problemas. Se for o caso, deve ser feito um contato com a prefeitura para fazer intervenções mínimas em áreas de educação, saúde ou centros de convivência. 
Após as visitas, cada equipe deve tentar convencer os demais sobre uma intervenção que todos possam realizar em um desses locais. “É importante que apenas uma ideia seja contemplada, justamente para mostrar que na vida pública existe a necessidade de fazermos escolhas e investirmos sobre a lógica do convencimento – isso é fazer política”, define. O projeto sugere que a ação definida pelos integrantes no último encontro seja transformada em algo padrão da empresa. 
“Cada obra entregue pode terminar com um trabalho de conscientização em que os colaboradores envolvidos, em contato com a comunidade, realizem algo sob um dos três métodos acima, marcando a capacidade de pensarmos coletivamente”, propõe. Para Dantas, o objetivo será alcançado se o participante sair do curso desejando uma sociedade democrática e compreendendo que ele é responsável por essa sociedade.

Empresa quer despertar no trabalhador a capacidade de empoderamento

Lecy Garcia enfatiza que a ação faz parte de um programa muito maior, uma vez que a valorização do ser humano é um valor muito forte para a empresa. “Se a Síntese tem como propósito ter equipes de excelência, a base de tudo é o desenvolvimento da consciência crítica, da capacidade de empoderamento desses indivíduos. Eles se tornam multiplicadores dessa postura em casa, na vizinhança e na própria empresa”, assegura. Além dos 175 operários envolvidos na construção do empreendimento “Novo Cristo I”, onde está sendo ministrado o curso, a obra teve um grande impacto socioeconômico nos moradores do loteamento Warislândia. 
 A fim de também contribuir para o desenvolvimento do local onde está inserida, a empresa optou por contratar moradores da área, gerando emprego e renda. Ela cita como exemplo o microempresário Alan Souza, de 29 anos. Há um ano, ele fornece refeições para o canteiro de obras, uma atividade que aumentou significativamente a renda mensal da família. Ele conta que não tinha intenção de trabalhar na área, mas surgiu a oportunidade quando começou a garantir a alimentação do primeiro funcionário, que operava sozinho uma máquina para limpar o terreno. 
Atualmente, ele atende 130 operários, que consomem café da manhã, lanche, almoço e jantar, se for necessário. São mais de 300 unidades vendidas por dia e o crescimento exigiu capacitação. “Tivemos que nos formalizar para ter CNPJ e emitir nota fiscal, tudo direitinho. Por meio da Síntese, conseguimos parceria com a REDES/FIEPA, que nos deu assessoria nesse processo. Já contratamos sete pessoas daqui para nos ajudar com a demanda”, conta. Alan também é o vice-líder comunitário e está participando da turma de iniciação política. Ele considera a ação, por si só, inovadora e uma atitude “surpreendente” por parte dos empresários.
“Compartilhar esse conhecimento é um diferencial para qualquer empresa. Os instrutores estão sendo muito atenciosos e tirando dúvidas, coordenando as discussões. Isso desperta ou faz a gente recuperar o interesse pela política porque muitos estão desacreditados com o poder público, não sabem a quem recorrer para fazer valer os seus direitos”, observa. Como integrante da liderança comunitária, ele admite que o curso está dando uma nova perspectiva sobre a atuação social. No loteamento, a mudança está chegando aos poucos. Segundo Alan, antes não havia nenhum ambiente de lazer e agora eles têm quadra esportiva e pracinha. Os serviços de drenagem e construção do meio-fio também começaram e a expectativa é pela conclusão do asfaltamento. 
Ele compreende que, com uma maior noção política, reproduzida entre os moradores, é possível se articular mais e trabalhar melhor o senso de coletividade. “Temos um problema sério com o acúmulo de lixo nas ruas e fortalecer a cidadania é uma forma de conscientizar sobre o cuidado com o bem coletivo, para cortarmos essa prática, e de cobrar uma coleta de lixo mais eficiente”, exemplifica.
Para o doutor em Ciência Política pela Universidade Federal do Pará, professor Edir Veiga Siqueira, investir em iniciativas de responsabilidade social é o caminho para uma sociedade mais engajada e com formação política mais consistente. “Estes dois elementos [responsabilidade social e consciência política] são essenciais para fortalecer a sociabilidade. A pessoa que é voluntária e realiza atividades altruísticas vai desenvolver algo fundamental para o indivíduo, que é construir uma visão mais global e humana”, analisa. Na visão dele, está se desenhando entre a juventude, ainda em um processo embrionário, um novo ativismo político. 
Este modelo representa uma consciência macro que trabalha com parcerias entre o estado, o setor privado e sociedade civil. “Não dá para ficar esperando pelo poder público. Essa articulação é de suma importância. De fato, acredito que deveriam existir campanhas para que todas as ações de responsabilidade social, seja qual for o eixo, incluíssem noções teóricas sobre cidadania, acesso ao poder, consciência ambiental e outros tópicos similares”, argumenta.