quinta-feira, 24 de novembro de 2016

Combate ao desperdício de alimentos

*Publicado na página Responsabilidade Social, no jornal O LIBERAL de 17/12/2015

BRENDA PANTOJA
Da Redação

Com o lixo orgânico produzido por uma família em um mês, seria possível incrementar consideravelmente as refeições e cozinhar tanto pratos nutritivos quanto sobremesas saborosas. O combate ao desperdício de alimentos é uma causa levada a sério por Cirlene Ferraz, 44, que chega a economizar até R$ 250 reais em uma semana, graças aos hábitos que aprendeu com a mãe, que precisava sustentar 14 filhos com poucos recursos. Em média, 41 mil toneladas de comida vão para o lixo todos os dias no Brasil, o que daria para alimentar 25 milhões de pessoas. O país é considerado um dos dez que mais desperdiçam comida em todo o mundo, com cerca de 30% da produção praticamente jogados fora na fase pós-colheita. Os dados são do Instituto Akatu e da Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO).
A experiência de Cirlene com o reaproveitamento de alimentos vem desde a infância em uma região carente da Bahia. Hoje, ela divulga esse conhecimento nas oficinas que ministra através da organização não-governamental (ONG) Noolhar. “As oficinas são por demanda do público, então tem para comunidades da periferia, mas também tem para pessoas de maior poder aquisitivo. Eu percebo que o desperdício é um problema em todas as classes. Muita gente não gosta de usar cascas, talos e sobras de refeições”, observa. Nas mãos dela, casca de abacaxi vira doce, mamão verde é o ingrediente secreto de uma coxinha que se passa por bolinho de caranguejo e a casca de banana vira brigadeiro e até bife empanado. 
“Em casa, o desperdício é quase zero. O que realmente não dá para aproveitar, vai pra compostagem e vira adubo orgânico para a minha hortinha, onde planto cheiro-verde e pimenta. Tenho uma satisfação muito grande  em promover uma alimentação saudável e sustentável”, comenta. As partes das frutas e hortaliças desprezadas pelos consumidores, assim como os alimentos que não vão para as prateleiras dos supermercados e feiras por estarem com a aparência feia, fazem muita diferença para a parcela da população que vive em insegurança alimentar.
Um bom exemplo é a Casa da Sopa (Amidifae), no bairro do Guamá, que serve até 1.500 pratos por dia para moradores de rua e famílias carentes. O trabalho é realizado há 12 anos e conta com muitos parceiros para poder funcionar de segunda a sexta, recebendo quase 200 pessoas diariamente. Um dos apoiadores é o programa Mesa Brasil do Serviço Social do Comércio (Sesc-PA), que fornece mais de uma tonelada de alimentos todo mês para a Casa. As verduras e legumes, um pouco murchas ou com a casca batida que não interessam aos vendedores, pois não são escolhidas pelos consumidores, são aceitas de bom grado na entidade e vão direto para panelões e mais panelões de sopa.
“Tudo de comida que chega aqui, sai muito rápido. No máximo, em dois dias. Os nossos voluntários da cozinha passaram por treinamentos com o Mesa Brasil e sabem usar o máximo dos alimentos, a melhor forma de armazenar... O mais gratificante é saber que toda essa comida que seria jogada fora teve outro destino e nós ajudamos a garantir o que, para muitos, é a única refeição do dia”, afirma Izabel Malheiros, que coordena o espaço. Além da Casa, o Mesa Brasil ajuda mais 73 entidades na capital paraense. Em todo o Estado, são 181 instituições beneficiadas, graças ao apoio de 185 doadores.
A previsão inicial do programa era arrecadar 868 mil quilos em 2015, no Pará, mas a meta já foi ultrapassada e está em 950 mil quilos, de acordo com a coordenadora Arlete Saldanha. Segundo ela, o foco é receber os alimentos que não têm mais valor de mercado, mas ainda podem ser utilizados na complementação de refeições. A coleta e distribuição são feitas diariamente, além da realização de ações educativas que seguem um calendário com as instituições envolvidas. Camila Aguiar, nutricionista do programa, reforça a importância de praticar o aproveitamento integral de alimentos. “Cascas, que fatalmente seriam jogadas no lixo, podem ser usadas na produção de bolos e geleias. As sementes e talos, para fazer farofas e muitas outras opções”, frisa.

OFICINAS
A exemplo do trabalho de multiplicadora exercido por Cirlene, as oficinas promovidas pelo Mesa Brasil também estimulam, por meio de parceria com a Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa), a adesão das instituições ao processo de compostagem. “Assim, podemos aproveitar até o miolo da maçã, por exemplo”, completa Arlete. Apesar do Brasil ainda precisar avançar muito em relação ao consumo consciente, pois os dados mostram que o desperdício na cadeia produtiva e nos lares é grande, Arlete percebe que  a mentalidade dos empresários está mudando.
Em 15 anos de existência, o programa conquista cada vez mais parceiros e, inclusive, tem estabelecimentos que se comprometem a doar não somente aquilo que seria desperdiçado, mas contribuem com um carregamento de mercadorias em perfeito estado. “A questão da responsabilidade social tem sido mais cobrada pela mídia e pelos clientes. O desperdício também tem um impacto ambiental e sai caro para o bolso dos empresários. É uma saída inteligente achar meios de reduzir seus custos e ainda beneficiar a comunidade local”, pontua. 

Programa começa evitando as perdas entre a produção e o transporte

De acordo com a nutricionista Camila Aguiar, a atuação do programa começa com os varejistas, pois há muita perda desde a produção até o transporte. Essa primeira parte é realizada nas Centrais de Abastecimento do Pará (Ceasa), onde uma equipe do Mesa Brasil vai diariamente coletar os alimentos. Em um lugar onde o volume de comercialização atingiu a expressiva marca de 22,5 mil toneladas, a média de 3% de desperdício mensal pode parecer pequena. No entanto, representa cerca de 675 toneladas. A presidente da Ceasa, Bianca Piedade, assegura que o governo do Estado está avançando na implementação do Banco de Alimentos.
“Com esse projeto, a Ceasa vai se firmar como um polo para absorver essa demanda de alimentos da Região Metropolitana de Belém. O Banco será instalado em parceria com a Seaster [Secretaria de Estado de Assistência Social, Trabalho, Emprego e Renda], que tem todo um programa na área de segurança alimentar. Eles que irão coordenar esse trabalho de doações e o atendimento aos que estão em situação de vulnerabilidade alimentar”, adianta. O recurso de R$ 1,5 milhão do Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome para o Banco de Alimentos já foi anunciado pelo governo estadual há mais de um ano. A Seaster está na fase de processo licitatório para elaboração do projeto. 
Enquanto o Banco não sai do papel, a Ceasa tem cadastradas 214 famílias e 20 entidades, que vão diariamente coletar alimentos. Bianca ressalta que a Ceasa promove outras ações, como os projetos “Alimentando Vidas” e “Culinária Sustentável” para reduzir o desperdício. “A nossa ideia é que, em 2016, o Alimentando Vidas funcione de forma similar ao Mesa Brasil, mas em escala menor. Os participantes também recebem formações, podendo fazer da culinária uma fonte de renda”, acrescenta. Ela também acredita que a aprovação do Plano Nacional de Abastecimento de Hortifrutiflorigranjeiros (PLANHORT), que está em tramitação no Senado, vai ajudar a combater o desperdício nas Ceasas de todo o país.
“Sem sombra de dúvidas, toda a cadeia precisa ser aperfeiçoada. O nosso clima é um fator a ser considerado, pois contribui muito para que o produto perecível tenha uma perda nutritiva mais rapidamente. Além da infraestrutura, é necessário definir as normas técnicas e o plano nacional virá justamente para nos dar subsídios e respaldos”, defende. 

LOGÍSTICA
A logística do abastecimento é um dos maiores obstáculos na Região Norte, enfatiza Patrícia Gonçalves, coordenadora da ONG Noolhar. “Por não sermos produtores de muita coisa - 70% da nossa produção vem de fora - a perda é grande pela dificuldade de logística e distância. Isso esbarra em questões maiores, como a condição de estradas, e em questões culturais, como a importância de priorizar consumo de produtos locais”, destaca.
Programar a compra com atenção antes de ir ao supermercado também é um dos fatores importantes e simples de serem cumpridos, mas que tem grande impacto no volume de lixo produzido por uma família. Para Patrícia, o consumo consciente é a chave de uma alimentação mais sustentável em casa. “É preciso pensar em uma escala maior: quando desperdiço umas frutas, desperdiço a água usada no cultivo, o combustível do transporte. Considero o desperdício em grandes proporções como um crime contra a humanidade, pela quantidade de pessoas passando fome”, argumenta.
A reflexão, segundo Patrícia, também é válida na realização de eventos. “É preciso incentivar a realização de eventos sustentáveis, começando por questionar a produtora de eventos ou o buffet contratado sobre a preocupação com o planejamento e a sobra das refeições, a exemplo do que a ONG faz”, exemplifica. 
Para o dia-a-dia, ela simplifica: a principal preocupação da família precisa ser não desperdiçar o que ainda é nutritivo. “É importante lembrar que reaproveitamento não se trata de comer o que não presta, e  por isso iria para o lixo, mas sim de não jogar fora o que ainda pode ser consumido”, resume.

segunda-feira, 24 de outubro de 2016

Projeto muda realidade de Breu Branco

*Publicado na página Responsabilidade Social, no jornal O LIBERAL de 03/12/2015

BRENDA PANTOJA
Da Redação

Capoeira, aulas de reforço, dança e teatro são algumas das atividades realizadas pelas 80 crianças que
frequentam diariamente a sede do projeto Torpedos Mirins, no município de Breu Branco. Localizada no sudeste paraense, distante cerca de 415 km de Belém, a cidade tem uma média de 54 mil habitantes e é carente de políticas de assistência, educação e lazer para o público infantil. É neste cenário que se destaca a organização não governamental (ONG) União dos Torpedos de Educação Infantil e Juvenil do Pará, responsável por implantar o projeto social 18 anos atrás. Graças a uma reforma no espaço, já na fase de acabamento, eles se preparam para ampliar o funcionamento no ano que vem, quando atenderão 120 crianças e oferecerão cursos de capacitação para adultos.
A instituição conta com o apoio da Dow Corning, empresa que atua com a produção de silício metálico na região, em uma parceria que dura 15 anos. Givanildo Peres Ferreira, 34, é quem coordena o trabalho com dedicação há quase duas décadas. A experiência o permite ressaltar alguns aspectos interessantes da comunidade alcançada pela iniciativa. “O nosso principal diferencial é a aproximação com a família e as escolas. Entre 30% e 40% das famílias atendidas têm uma realidade peculiar, que é o convívio dos filhos só com a mãe. Muitas vezes, o pai é obrigado a sair do município atrás de emprego e só volta a cada três meses”, observa.
Ele explica que o acompanhamento começa no processo de seleção, quando a ONG abre o edital para o ano letivo e já tem uma lista de espera. Os voluntários visitam as casas das famílias para saber se elas se encaixam nos critérios exigidos: que a criança tenha entre 8 e 13 anos e estude na rede pública, que esteja em situação de vulnerabilidade social e que more, de preferência, em bairros próximos à sede do projeto. “Quase todas as crianças do Torpedos são de uma única escola, mas nos reunimos periodicamente com as coordenadoras pedagógicas para saber o desenvolvimento deles e elas confirmam que a diferença aparece nas notas e no comportamento dos alunos. Muitos entram aqui como repetentes e, ao final do ano,  conseguem evoluir bastante e passar de ano no colégio”, conta.
No Torpedos, o reforço escolar é das disciplinas de Português e Matemática. As crianças também participam de atividades na sala de informática e na sala de artesanato, onde a produção está a todo vapor para a peça de Natal, e de momentos de esporte e recreação. A biblioteca é um dos espaços preferidos dos meninos e meninas. Elas passam por todas as atividades, em um rodízio durante a semana, e Givanildo acredita que são os resultados que dão credibilidade ao projeto. “Trazer os estudantes para cá no contraturno da escola dá certo porque eles fazem as pesquisas e tarefas da escola na sala de informática e na biblioteca. Claro que a gente não substitui o empenho no colégio e a atenção da família, mas eles aprendem bastante conosco”, comenta. 
De 2014 para 2015, eles conseguiram passar de 60 para 80 crianças atendidas e, desde a fundação, mais de cinco mil já foram beneficiadas pelo projeto. No entanto, o coordenador da ONG gostaria de ver um maior envolvimento da comunidade local no trabalho social. “Tivemos a parceria de um empresário local para instalar os computadores, mas o engajamento ainda é muito tímido. Alguns pais ajudam na realização de eventos, mas para todas as nossas atividades temos somente cinco voluntários fixos”, diz. Para ele, a ajuda da  Dow Corning tem sido fundamental para manter a ação em andamento e crescendo. Neste ano, o repasse da empresa ao Torpedos chegou ao expressivo valor de R$ 92 mil. “A transparência na prestação de contas é o fator de sucesso dessa parceria, pois o que recebemos é realmente usado em prol de melhorias e se não fosse isso, as crianças não estariam aqui hoje”, analisa.
Os recursos foram aplicados na pintura externa e interna de toda a sede, na ampliação da sala de leitura, no reparo das infiltrações, instalação de janelas, computadores e centrais de ar condicionado. O refeitório, na parte de trás do  terreno, também aumentou e ganhou uma cozinha industrial, dois banheiros comuns e um banheiro acessível para  pessoas com deficiência. A previsão é que as obras terminem até dia 15 deste mês. Ainda no mês de dezembro, Givanildo informou que será lançado o edital do ano que vem, ofertando 120 vagas.
Além do apoio no conteúdo pedagógico, o impacto do Torpedos Mirins consiste em apresentar aos garotos e garotas novos hobbies, a possibilidade de ampliar os horizontes e de se envolver em práticas saudáveis para a mente e para o corpo. A estudante Larissa Lima Pereira, 10, listou os benefícios que o projeto proporcionou a ela. “Entrei aqui esse ano, mas já conhecia e tinha muita vontade de participar. Ficou mais fácil de entender Matemática e gosto muito quando vou para a sala de leitura e posso pegar várias revistinhas em quadrinhos”, relata. Como criança que é, ela também gosta das brincadeiras e das aulas de dança (“já aprendi um bocado de ritmo diferente”).
A menina também se destacou  nas classes de teatro e no dia 15 vai se apresentar pela primeira vez em uma peça. A estreia de Larissa vai ser na encenação de Natal, na confraternização do projeto, onde vai interpretar nada menos do que quatro personagens. Ela confessa que não precisou decorar falas, mas vai ter que ser ágil para trocar de figurino entre as cenas e está ensaiando muito.
As aulas de interpretação e dança também ajudaram João Vítor Abreu Lopes, 11, a se sentir mais confiante. Ele, que tem preferência pela capoeira e se diverte com os gibis, entende muito bem os avanços que tem conquistado por meio do Torpedos. 
“Gosto de estudar Matemática e Português, mas foi com as aulas de reforço que consegui subir minhas notas e aprendi a ler mais, antes não tinha muita vontade. Vejo que muitos colegas têm dificuldade na escola e que eu melhorei com a ajuda do Torpedos”, avalia ele, que frequenta a ONG desde os 9 anos e prefere “nem pensar em ter que sair do projeto” quando atingir a idade limite. O rendimento escolar e o desenvolvimento pessoal do garoto animou a mãe, a pescadora Ivonete Conceição Abreu, de 34 anos, que percebeu o filho mais educado e mais esperto após frequentar a ONG.
Segundo ela, João Vítor ia muito desanimado para a escola e não tinha atividade para ocupar o tempo livre. “Tudo isso que ele faz aqui, eu não teria como pagar. Agora, ele tem mais ânimo para estudar e é um garoto interessado, que gosta de tudo um pouco: capoeira, dança, carimbó, informática...”, ressalta. Uma das preocupações de Ivonete era em não deixar o filho brincar na rua, longe de sua supervisão. “O projeto é muito importante,  pois tira eles desse ambiente, onde podem se envolver com criminalidade e drogas”, acrescenta. 

Universitário hoje trabalha no projeto que o acolheu há 14 anos

O contato com a capoeira através do Torpedos Mirins foi decisivo para o voluntário Tiago dos Santos Silva, 23, que hoje está no quarto semestre do curso de Educação Física. Aos 9 anos de idade, foi atendido pelo projeto durante um ano, tempo suficiente para marcar a vida dele. Aos 11 anos, Tiago passou a integrar um grupo independente de capoeira da cidade. Com 17 anos e no ensino médio, ele estagiou na ONG, mas só há três anos é que se tornou professor fixo de capoeira da turminha, que de pequena não tem nada: ele dá aula para todos os 80 meninos e meninas, em dois dias da semana.
“O que me motiva a ajudar é o fato de ter sido ajudado antes. A gente aprende a lidar com cada um, ao longo do ano eles vão desenvolvendo a técnica, o respeito e cuidado com os outros jogadores, além da disciplina”, pontua. A paixão pela capoeira influenciou diretamente na escolha da carreira de educador físico e ele assegura que a atividade traz muitos para as crianças, proporcionando um desenvolvimento mais saudável, mais resistência física e cardiorrespiratória, além de ser uma atividade cultural.
Com a ampliação de atendimento, Tiago provavelmente terá de ir ao projeto três vezes por semana, mas isso não é um fardo para ele. “O ensino da capoeira foi uma missão que adotei. Investir em projetos como esse faz muita diferença porque se tornam oportunidades para as crianças. Ainda mais em uma cidade que só tem o Torpedos de projeto social nesse formato amplo”, complementa. Ele também integra o grupo de capoeira ACTC e tem planos de retomar as aulas gratuitas nas escolas.Todo fim de semana, 10 instrutores se dividiam entre as escolas dos bairros e davam aulas de capoeira de graça. “Reuníamos, em média, 50 alunos por escola. Tivemos que parar o projeto por falta de apoio, mas agora nos regularizamos, criamos CNPJ  e vamos voltar”, adianta. Além do grupo e das aulas, a rotina  de Tiago inclui a faculdade e o trabalho como mototaxista.

Apoio de multinacional é fundamental à ampliação do trabalho social

Em 2015, a Dow Corning repassou R$ 47 mil para a manutenção da ONG e mais R$ 45 mil para as obras de ampliação, tarefa que apoiou promovendo parcerias entre o Torpedos e o núcleo de Engenharia Civil da Universidade Federal do Pará (UFPA) para a elaboração e execução do projeto. Os valores chamam atenção, mas a colaboração também se baseia em um diálogo direto com os agentes desse trabalho social.
O apoio da empresa no planejamento da entidade permitiu tirar do papel projetos como a reforma da sede, o que possibilita um espaço para atender também adultos no período noturno, contribuindo para a capacitação da população local. De acordo com a coordenadora administrativa da Dow Corning, Ana Paula Portela, o foco do investimento social da companhia é na educação e investir na estrutura física da ONG ajuda a solidificar a atuação.
“O objetivo é tirar crianças, jovens e agora ampliando o alcance para adultos, de um ambiente de risco e trazer para um ambiente de oportunidades, com visão de futuro”, destaca. Na sede do Torpedos, serão oferecidos cursos da área de mecânica pelo Serviço Nacional de Aprendizagem Industrial (Senai). 
A primeira turma terá 25 alunos e começará no primeiro semestre do ano que vem. “Essa mão-de-obra é uma demanda que a nossa fábrica tem. O curso aumenta a chance de empregabilidade, mantendo os moradores aqui, para desenvolver localmente”, frisa. Neste ano, a Dow Corning passou por uma atualização tecnológica e doou os computadores trocados para a ONG, que conseguiu estruturar a sala de informática com 15 equipamentos.
A empresa apoia campanhas pontuais no município, dependendo da relevância da iniciativa, mas Ana Paula afirma que as ações do Torpedos prometem “resultados futuros mais sólidos e mais sustentáveis”. Foi por acreditarem na capacidade do projeto que o Comitê de Relações com a Comunidade da Dow Corning decidiu aumentar o repasse nesse ano, mesmo em um cenário difícil na economia brasileira. “A empresa entende que é um trabalho que tem valor e que aplicações voltadas para responsabilidade social devem ter prioridade porque contribuem para a qualidade de vida, formam cidadãos conscientes e os profissionais que futuramente poderão somar com a companhia”, resume.

quinta-feira, 29 de setembro de 2016

Turismo à moda marajoara

*Publicado na revista Amazônia Viva, nº 54, fevereiro/2016 
*Terceira colocada na categoria Impresso do Prêmio de Jornalismo em Turismo 2016

     As canoas saem da Praia do Pesqueiro, em Soure, em direção a um pontão de areia e, poucos minutos depois, chegam à Vila do Céu. Logo na entrada, uma placa indica o restaurante “Brisa do Céu”, construído em um esforço conjunto pela comunidade de pescadores. Os moradores perceberam que os viajantes que saíam da rota oficial do turismo na Ilha e chegavam até o local, não encontravam opções de alimentação e hospedagem, tendo que voltar para o Pesqueiro. Depois que o estabelecimento, erguido com uma estrutura de taboca e palha, foi inaugurado, a renda arrecadada tem sido usada para promover melhorias na vila e o plano é abrir uma pequena pousada ao lado.              Os visitantes que costumam explorar a vila, com suas coloridas casas de madeira e uma rotina muito diferente das grandes cidades, são aqueles interessados em turismo de base comunitária. A preservação ambiental é um dos fatores que chama a atenção desse público, mas o que realmente encanta é o contato com o acolhedor povo amazônico.  “Esse modelo de turismo traz a parte humana da viagem, para que as pessoas conheçam a dinâmica e a diversidade da região através de seus habitantes. É importante que o brasileiro explore a Amazônia para aprender a valorizá-la”, afirma Maria Teresa Junqueira, gerente da operadora de viagens Turismo Consciente.
     Natural de São Paulo, Maria Teresa começou a desbravar a Amazônia há 15 anos com o projeto Vaga Lume, que implanta bibliotecas comunitárias em localidades rurais e ribeirinhas. A partir da interação com as comunidades do Arquipélago, ela participou da montagem do roteiro VEM – Viagem Encontrando Marajó, em 2007, em parceria com a Associação de Mulheres da Vila do Pesqueiro. A experiência inclui atividades como coleta de turu, pesca artesanal, passeio no mangue e pernoite nas comunidades. 
     O projeto recebeu financiamento do governo federal, possibilitando a capacitação de muitos moradores. Eles se dividiram entre os que participaram de oficinas gastronômicas, para resgatar a culinária tradicional, de guias turísticos e anfitriões, que formou os responsáveis por coordenarem os grupos e organizarem os passeios, e de hospedagem, para aqueles que escolheram abrir as casas para os turistas. Embora o projeto esteja oficialmente parado há pelo menos cinco anos, por dificuldades de articulação junto à Associação, os agentes do turismo comunitário continuam trabalhando na área, através de parcerias com hotéis e agências de viagem.
      É o caso da Lucileide Borges, 41, que tem várias funções na comunidade do Pesqueiro, entre elas a de professora e a de guia do passeio de extração do turu. A tarefa é desempenhada ao lado do esposo, e sob os olhares curiosos e desconfiados dos visitantes, eles pegam os moluscos no mangue, fazem a limpeza e a degustação.  “A procura por esses roteiros tem crescido e o diferencial é que é um modelo que promove a preservação ambiental, porque os turistas conhecem melhor a natureza local, e são criados laços entre quem vem de fora e a gente. Não é um trabalho impessoal”, diz. 
    Ainda segundo ela, a renda gerada por essa atividade complementa o orçamento de muitas famílias. “Esse turismo envolve os parceiros das comunidades de pescadores, beneficiando gente que, muitas vezes, só tem o bolsa família de renda fixa. A consciência com o meio ambiente também aumenta entre os moradores, que passaram a se preocupar mais com destino adequado do lixo e até com a poluição sonora”, completa. Maria Teresa ressalta que o turismo de base comunitária não pode transformar a atividade econômica de uma localidade, funcionando melhor como uma renda extra. “Há uma linha tênue: até onde dá para a gente ir para que as pessoas não deixem de desenvolverem as ocupações tradicionais? Se abandonam isso e o fluxo de turistas cessa ou diminui, a comunidade sofre um declínio”, pontua. 
      Percorrendo as praias, vilas, fazendas e rios de Soure, Ana Cristina Penante, 38, fala com muita segurança sobre as características da gente, dos animais e das plantas marajoaras. Ela é uma atuante promotora do turismo regional no Marajó, com 15 anos de experiência. Para ela, o impacto na vida da comunidade é visível, mesmo com poucos investimentos no setor turístico. “Quando começamos a hospedar turistas na vila, só podia recebê-los quem tinha banheiro dentro de casa, com fossa séptica. A partir daí, mesmo quem não precisava seguir essa exigência, fez questão de adaptar o banheiro e hoje praticamente todas as casas da vila estão adequadas”, conta.
    Ela comenta que o turismo, especialmente o que busca o envolvimento com as populações tradicionais da Ilha, esbarra em dificuldades de comunicação, transporte e incentivo. “Nas vilas do Pesqueiro, Céu e Caju-una, por exemplo, só pega o celular rural e se tiver antena boa. Para chegar a alguns desses locais, tem que ter autorização para passar por dentro de fazendas e o transporte aqui na ilha tem um custo muito alto. O poder público pouco divulga e informa os turistas sobre iniciativas de base comunitária. O Marajó tem um enorme potencial turístico, que pode beneficiar muito os habitantes, mas falta as nossas autoridades perceberem isso para a gente conseguir crescer mais”, acrescenta.
      Outro grande efeito de trabalhar com os moradores locais, de acordo com Ana Cristina, é ver o fortalecimento da articulação e do empoderamento. Maria Teresa destaca que o “Brisa do Céu” é um ótimo exemplo de “inteligência social”. De trás do balcão, sempre sorridente e sentindo prazer em receber bem os clientes, a gerente Joelma Sousa, 29, fez questão de registrar no celular imagens do estabelecimento lotado de visitantes que tinham chegado de São Paulo. Os turistas almoçaram peixe frito com açaí, ao som de bregas marcantes e de frente para a praia, com um vento incessante que faz jus ao nome do restaurante. 
      “A nossa ideia é ampliar e abrir uma pousada, construindo alguns quartinhos. A comunidade fica afastada e é basicamente familiar, mas nos reunimos e decidimos oferecer opções para os visitantes comerem e se hospedarem”, reforça. O restaurante foi construído há menos de um ano, erguido e equipado a partir da coleta e da mão de obra da comunidade.  “O lucro é usado em melhorias para a comunidade, como a revitalização de áreas de uso comum, na sede da associação de moradores, na igreja, no colégio. Esse sistema tem funcionado muito bem e só tem benefícios a trazer”, avalia. 
        Além da interação com a natureza, o roteiro montado por Maria Teresa costuma incluir a visita ao ateliê do escultor ceramista Ronaldo Guedes, 40, que mostra um pouco da arte marajoara. No bairro do Pacoval, onde fica o espaço, ele também promove ações ambientais e culturais paras as crianças. “É um trabalho voltado para a cultura, mas também de consciência política, para que as pessoas daqui se apropriem do seu território e entendam o quanto esse aspecto histórico da arte representa para o nosso desenvolvimento”, defende.
       Para o grupo de cerca de 20 turistas de São Paulo, que viajaram com os filhos pela Turismo Consciente, a oficina de cerâmica foi um dos momentos mais especiais, pois eles puderam produzir as próprias peças, que depois foram ao forno para ficarem prontas. “O turismo de base comunitária é um elemento importante para a gente porque há uma troca de experiências e contribui para a nossa renda. Ensinar e aprender com a cultura dos outros sempre é enriquecedor, ainda mais pela cerâmica marajoara ter relação direta com a pré-história da Amazônia”, frisa. 

quinta-feira, 15 de setembro de 2016

"As ilhas de Belém são esquecidas nas políticas públicas"

*Publicado na revista Amazônia Viva, nº 53, janeiro/2016 

Mais da metade do território de Belém - especificamente 65,64% - é composto por ilhas. Ao todo, são 39 ilhas que abrigam cerca de 62,7 mil habitantes e que só foram incluídas oficialmente na cartografia em 2010. 

Os quatro séculos de história da capital paraense não devem ser celebrados apenas no continente, uma vez que os ambientes insulares são fundamentais para entender melhor a cidade e o seu processo de formação. As águas, assimiladas como lugar de travessia, estão associadas às ilhas nelas existentes, comumente percebidas como um lugar de isolamento, de paragem e nem sempre de fixação. Os primeiros registros da área são nesse sentido, em documentações produzida entre os séculos XVII e XIX, que informam a utilização delas para instalação de faróis ou sinaleiras para orientar a navegação, como lugares de pesca, fugas, esconderijos ou moradias de indígenas, escravos africanos e fugitivos.
Estas relações são retratadas no projeto de pesquisa "Belém de águas e ilhas - 400 anos: saberes, usos, memórias e histórias da insularidade", coordenado pela professora Leila Mourão Miranda, doutora em Desenvolvimento Socioambiental, da Universidade Federal do Pará. Na entrevista a seguir, ela fala mais sobre a conexão entre estes espaços.

Estamos celebrando os 400 anos da fundação da capital paraense e não dá para falar da cidade que existe só no continente, ignorando a Belém insular. Como foi o processo de ocupação das ilhas de Belém?
As ilhas de Belém representam o seu pedaço maior, e é ainda, o mais rico em biodiversidade e o mais esquecido e preterido nas políticas públicas. E isto não ocorreu ao acaso. A noção conceitual de ilha traz em si uma carga cultural simbólica e de representações cheia de preconceitos na memória coletiva. A historiografia sobre cidade de Belém a semelhança de relatos de viajantes tem indicado a existência das águas e ilhas contíguas, mas de forma tangencial aos temas específicos de cada investigação, focados essencialmente na história da parte continental. A documentação sobre a cidade e quase toda a cartografia histórica pouco se refere a tais características, concentrando-se em historiar e representar a área continental, ainda que as ilhas tenham sido referenciadas em diferentes aspectos: local de esconderijos, sede de importantes engenhos, indústrias e olarias (Ilha das Onças), locais para segregação e isolamento de doentes (Arapiranga, Tatuoca e Outeiro), prisões e assemelhadas (Cotijuba), mas principalmente como fornecedoras de açaí. Foi somente no final do século XIX que algumas foram sendo povoadas através de projetos de governo de imigração por ele promovida, como Caratateua (Outeiro) e Cotijuba. Outras de menor importância (Combu, Ilha Grande, Periquitos) para o Estado foram ocupadas por migrantes nordestinos, recusados nos projetos governamentais relativos à produção do látex, ou que vinham por conta própria para a Amazônia, sem condições financeiras para chegar aos seringais ou castanhais. No século XX se elaborou uma nova percepção e significado de algumas dessas ilhas como área de turismo e lazer (veraneio) ou de prisões. As ilhas de Outeiro, Mosqueiro, Onças se tornaram locais favoritos de lazer e descanso, para a elite estrangeira e os novos enriquecidos pela extração e comercialização do látex da castanha e das madeiras. Os chalés da orla de Mosqueiro são exemplos da materialização desse processo de ocupação. 

Sem dúvida, é importante conhecer esse processo para entender melhor a relação existente hoje entre os dois territórios. De que forma se dão as relações de trabalho, economia e dependência entre a cidade e as ilhas?
Em relação ao trabalho e suas relações os ilhéus belemitas vivenciaram e vivenciam as que se caracterizam como familiares, baseadas na cooperação nos períodos entre os séculos XVIII e XIX, mas ocorreu a reprodução das relações sociais de trabalho escravagistas vigentes na colônia, nas ilhas onde se instalaram engenhos, olarias, e fábricas, como nas ilhas das Onças, Mosqueiro Cotijuba, entre outras. Após a abolição da escravidão os moradores das ilhas retomaram às relações familiares de trabalho e algumas vezes ao assalariamento ou remuneração por produção no corte e carregamento do palmitos. Ressalta-se que nas últimas três décadas ocorreram mudanças na organização social para a produção, apropriação e comercialização dos produtos nas ilhas, adotando em parte as noções ambientalistas de sustentabilidade e de patrimônio cultural no manejo e cultivo de produtos aromáticos e medicinais, produzidos tradicionalmente e comercializados nas feiras da cidade continental, especialmente na do Ver-o-Peso. Nas primeiras décadas do século XX os ilhéus se organizaram em centros comunitários e associações de moradores sob orientação de técnicos de instituições governamentais e não governamentais, no sentido de defender seus interesses socioeconômicos e culturais. Em face a novas demandas sobre o território e trabalhadores das ilhas, surgiram propostas de instalação de empresas produtoras de alimentos, turismo e de produção de insumos para a indústria de cosméticos. Por estes contratos, os produtores são autônomos e sem vínculos empregatícios com as empresas contratantes e produzem a partir de aspectos materiais e simbólicos – o saber e o fazer – sob novas exigências tecnológicas, reconfigurando suas tradicionais relações familiares, de amizade, de compadrio, de trabalho e de lazer, assegurando sua sobrevivência e sua inserção no mercado globalizado.

A construção da identidade do belenense é vista de forma diferente entre os moradores das ilhas? Como é a representação deste ambiente pela população local? E pelo poder público?
As políticas oficiais de governo tem representado os sujeitos insulares como rurais e os projetos relacionados as ilhas são realizados como tentativa de inseri-los na civilidade urbana de Belém. Os moradores das ilhas vivenciam as experiências da cidade em quase todos aspectos de suas vidas, o que fazem deles também belemitas, ainda que estruturem e organizem suas vidas e sociedade em função das águas e das insularidades. Elas são os seus caminhos e lugares de territorialidade. As ilhas, neste sentido, são os lugares de morar, de viver, de lazer, de produzir e reproduzir socialmente. Em termos da memória coletiva, simbolicamente as ilhas e seu entorno – as águas – significam e representam o seu lar. E na cidade continental e insular se entrecruzam os sujeitos e as relações sociais de produção e reprodução, buscando uma simbiose entre rural e urbano, natureza e cultura, que as políticas públicas não dão conta. Acrescentamos também que os ilhéus vêm ressignificando suas identidades ao estabelecerem as parcerias com as empresas, na possibilidade de se mostrarem sujeitos com garantias de direitos, no limite da significação passado-presente, na memória manipulada entre rural e urbano, inserindo-se como moradores das ilhas na cidade.  

O projeto, ao recuperar a história socioambiental das ilhas e a interação com a história da sociedade continental, busca dar uma perspectiva mais ampla sobre a importância desta região e valorizar suas contribuições?
Os resultados da pesquisa tem apontado as percepções públicas e privadas sobre as ilhas e águas que contornam a parte continental da cidade e podem indicar as possibilidades de inflexões na cultura, na política e nas ações públicas e privadas na perspectiva de construirmos outa percepção cultural e econômica. Uma outra cultura que contribua para a inserção das ilhas e seus habitantes na cidade, resguardando a especificidade de cada modo de viver ao evidenciar no debate a importância que as ilhas e seus habitantes têm, por exemplo, no abastecimento do açaí, de plantas aromáticas e medicinais, ou na oferta de espaço para o turismo, na manutenção manejada das coberturas florestais para melhorar o clima da cidade continental, entre outras possibilidades. Ainda são tímidas as ações práticas, mas espera-se que num futuro próximo a cidade de Belém seja pensada e não só representada com suas ilhas e águas na elaboração de sua história e demais ciências, mas como objeto de políticas públicas.

quarta-feira, 31 de agosto de 2016

Felicidade estampada na cara

 *Publicado na revista Amazônia Viva, nº 35, julho/2014 
 Os brincantes do Arrastão do Pavulagem são das mais variadas idades, mas com uma coisa em comum: a alegria de fazer parte de uma identidade cultural própria da Amazônia

A profusão de cores e a energia da multidão que acompanha o Arrastão do Pavulagem são testemunhadas do alto das pernas de pau pelo ator circense Marcos Augusto Machado, de 24 anos, na foto da página anterior, que abre esta reportagem. “É uma visão privilegiada e a gente fica em destaque. A reação das crianças é muito legal. Até os adultos ficam deslumbrados”, conta ele, que integra o cortejo há sete anos. Foi onde descobriu a arte do circo, “uma paixão que começou no Arraial”. Ele garante que usar as pernas postiças já é um costume, mas mesmo assim passa por duas semanas de ensaios diários para sair nos desfiles. “Comecei no grupo da dança, mas a perna de pau é mesmo onde gosto de estar. Aqui a gente também canta e dança e faz tudo isso no alto, o que é muito mais difícil e divertido”, diz. 

O Arrastão leva até 20 mil pessoas para as ruas de Belém durante a quadra junina. A estimativa é da organização do evento, realizado pelo Instituto Arraial do Pavulagem, que desde o ano passado conta com o patrocínio da Vale, por meio da Lei Rouanet, e apoio cultural da Prefeitura de Belém e TV Liberal. 
Além de fortalecer a cultura regional, o festejo tem um significado importante no romance da advogada Ana Paula Braga, 25 anos, e do educador físico Sanclayton Diniz, de 31. No ano passado, o casal posou com o estandarte de Santo Antônio para uma foto e o padroeiro dos namorados ajudou a uni-los. Este ano, eles voltaram para um novo registro do romance, já com data marcada para o casamento. “E ainda tem o Vítor, nosso bebê, na barriga. Estou com quatro meses de gestação. O Arraial é mesmo abençoado”, acrescenta a noiva.
Sanclayton lembra que a manifestação cultural sempre fez parte da vida deles e continuará fazendo. “Antes mesmo de nos conhecermos, cada um vinha para cá com a sua família. Mesmo sem saber, nos cruzamos em vários arraiais. E no próximo ano será especial, com o nosso filho no colo”, afirma. Ana
Paula acredita que a música é o grande diferencial do Pavulagem. “O ambiente, no geral, é muito bom, mas o som, a música contagia todo mundo, desde a criança até o idoso”, destaca a advogada.
Prova do que Ana Paula diz é a dedicação de Arthur Rodrigues, de apenas sete anos. Ele frequenta o Arrastão desde os quatro anos. “Mas disso eu não me lembro, é minha mãe quem conta”, se adianta à reportagem. Porém, esse pouco tempo de participação foi o suficiente para que o garoto fosse homenageado na blusa do Instituto. “Eu sou esse menininho dançando com o boi”, aponta na camisa
da mãe. Em todo cortejo, ele faz questão de chegar perto e bailar com o boi, em um momento de pura alegria. “Quando eu crescer quero ser o ‘tripa’”, anuncia, referindo-se ao responsável por vestir a fantasia e dar vida’ ao boi. “Começou espontaneamente, coisa de criança. Até ofereceram para ele sair de vaqueiro, mas ele não quis, só aceita se for de boi. Ele não falta a nenhum arrastão e é tão especial para o Arthur, que ele chora quando acaba a festa”, relata a mãe, Andressa Rodrigues.
O ator e arte-educador Emerson de Souza, de 36 anos, é um dos vaqueiros que interagem com o boi durante o cortejo, em uma atuação que encanta a todos os brincantes. “A coreografia e a encenação começa a ser montada 15 dias antes dos arrastões, pelos quatro vaqueiros, que tem a função de protegerem e serem guardiões do boi”, explica.
Integrante do Arraial desde 2004, ele também ministra oficinas de perna de pau, esforçando-se para levar para as ruas um espetáculo interativo. “O cortejo em si é um teatro vivo que chama a atenção pela movimentação e pelas brincadeiras, além de valorizar a cultura paraense”, resume. A mesma animação das crianças brilha nos olhos da aposentada Elizete Rocha, de 69 anos, que abre o cortejo orgulhosa, levando o estandarte de São João. “O Arrastão é uma das poucas festas populares que se mantém forte. E assim vai continuar se depender de mim, nem que eu tenha que vir de cadeira de rodas”, assegura. Ela já tem 12 anos no Instituto, ambiente onde encontra respeito e alegria. “Comecei por curiosidade, queria alguma atividade para ocupar o tempo e aí não parei mais. Aqui me sinto muito viva, no Pavulagem a idade não importa”, completa, preparando-se para mais um Arrastão por Belém.

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quarta-feira, 10 de agosto de 2016

Consciência crítica no canteiro de obras

*Publicado na página Responsabilidade Social, no jornal O LIBERAL de 19/11/2015

BRENDA PANTOJA
Da Redação

Democracia, cidadania e a estrutura do Estado brasileiro. Esses três tópicos vêm sendo amplamente discutidos em um canteiro de obras no bairro do Icuí-Guajará, em Ananindeua. Nesse ambiente de trabalho, o debate vai além das rodas de conversas informais sobre o cenário político ou a crise econômica do País, pois é realizado durante o Curso de Iniciação Política, gerando um entendimento mais amplo e formando cidadãos multiplicadores. A iniciativa é da empresa Síntese Moradia, que selecionou 58 funcionários, fornecedores e moradores da comunidade para assistirem às aulas. 
A turma participará do segundo encontro amanhã e encerrará o ciclo na próxima sexta-feira. A atividade é realizada sempre de 8h às 12h30, dentro do expediente. A diretora executiva Lecy Garcia garante que é a primeira vez que um curso nesse formato é ministrado para colaboradores da indústria da construção civil em Belém. O objetivo é oferecer conteúdo de introdução às questões políticas, de forma suprapartidária, e fortalecer a formação cidadã do corpo de trabalhadores, composto em quase 70% de habitantes das comunidades próximas. 
O resultado, acreditam os organizadores, será visto na prática, a partir de uma mudança de postura e de articulação nos moradores do bairro. “Pesquisas mostram que três meses depois das eleições, 60% das pessoas não lembram mais em quem votaram para cargos como os de vereadores, deputados estaduais e federais. É muito importante criar no eleitor uma provocação, instigá-lo a ponto de que ele não esqueça quem elegeu e se lembre de cobrar esse político”, afirma Rodrigo Garcia, diretor de Gestão e Estratégia da empresa.
A ideia surgiu no último período eleitoral, quando uma obra estava sendo finalizada no município de Capanema, e vários funcionários pediram aos seus encarregados que indicassem em quem deveriam votar. “Isso não é bom, pois abre brecha para manipulação e transfere a responsabilidade do cidadão. Nossa meta com esta ação é que eles construam autonomia de escolha, de consciência crítica. O voto é inalienável, é seu, a responsabilidade é de todos nós para transformar o País”, reforça. 
O encarregado de obras Ivaldo Tadeu Caldas, 51, é um dos participantes e já parou para reavaliar sobre muitos pontos na primeira aula. Para ele, saber como funciona o sistema é fundamental para cobrar mudanças, tais como reduzir “as regalias dos políticos”. Apesar de otimista e confiante no desenvolvimento do Brasil, ele se diz realista. “Vai ser um processo lento. Para melhorar a situação, a gente tem que cumprir o nosso papel também, tem que ter entendimento sobre as leis do país”, pontua. O curso, nesse sentido, é classificado por ele como “necessário e proveitoso”. 
Ivaldo observou que o primeiro momento de discussão deixou muitos “surpresos”. “Ao poucos, vai abrindo a mente para uma visão diferente, uma interpretação que nem sempre estamos acostumados. Nos ajuda a perceber a responsabilidade em relação aos que colocamos no poder para representar o povo”, pondera. A preocupação com a conscientização do filho está entre as reflexões que ele leva do curso. Em vez de mandar o filho votar em determinado candidato, vai conversar com o rapaz e incentivá-lo a decidir sozinho. 
Ele ressalta que as aulas sobre cidadania vão chamar a atenção dos operários sobre a importância dos deveres e também dos direitos. Ivaldo aponta um problema comum na construção civil, que é o trabalho informal. “Para se aposentar, o trabalhador da área tem que ter 35 anos de trabalho comprovados, mas muitos começam irregularmente, sem assinar carteira, e não percebem o prejuízo que isso pode causar”, diz. O reflexo também poderá ser visto na mobilização da comunidade, segundo ele, que se trata de uma área onde as políticas públicas demoram muito a chegar. “Quando a obra começou, tivemos que mandar furar um poço artesiano porque ainda não tinha abastecimento. Se houver organização e planejamento, e uma população consciente dos seus direitos, eles conseguem melhorias”, completa. 
A proposta das aulas não foi novidade nenhuma para o cientista político Humberto Dantas, formado pela Universidade de São Paulo (USP) e com mais de 300 turmas formadas em cursos livres de formação política. Contudo, esta foi a primeira vez que ele realizou o trabalho em um canteiro de obras. Segundo ele, as palestras são feitas, predominantemente, para um público de jovens estudantes de escolas públicas na periferia de São Paulo. De acordo com Dantas, há forte demanda também de fábricas, empresas, gerentes de banco e organizações públicas.
“É um trabalho necessário para os mais de 155 milhões de eleitores do país. Quando se trata de trazer para este ambiente, estamos lidando com agentes responsáveis por uma política pública, de habitação. Eles constroem moradias e são agentes dessa política”, destaca. Dantas amplia, frisando que o debate precisa ser feito por todos os cidadãos, para que todos tenham consciência de como são feitas as leis. Ele explica que o curso segue um formato simples, com palestras e desafios propostos aos participantes. As atividades contam com exibição de documentários, divisão em grupos e até ações práticas na comunidade. 
A culminância do curso será com uma ação dos funcionários e colaboradores, que deverão observar o que está errado no entorno da obra e pensar em formas de melhorar a realidade local. Eles poderão entrar em contato com uma associação do bairro e promover um diálogo para que os grupos saiam a campo, orientados por representantes para uma percepção dos principais problemas. Se for o caso, deve ser feito um contato com a prefeitura para fazer intervenções mínimas em áreas de educação, saúde ou centros de convivência. 
Após as visitas, cada equipe deve tentar convencer os demais sobre uma intervenção que todos possam realizar em um desses locais. “É importante que apenas uma ideia seja contemplada, justamente para mostrar que na vida pública existe a necessidade de fazermos escolhas e investirmos sobre a lógica do convencimento – isso é fazer política”, define. O projeto sugere que a ação definida pelos integrantes no último encontro seja transformada em algo padrão da empresa. 
“Cada obra entregue pode terminar com um trabalho de conscientização em que os colaboradores envolvidos, em contato com a comunidade, realizem algo sob um dos três métodos acima, marcando a capacidade de pensarmos coletivamente”, propõe. Para Dantas, o objetivo será alcançado se o participante sair do curso desejando uma sociedade democrática e compreendendo que ele é responsável por essa sociedade.

Empresa quer despertar no trabalhador a capacidade de empoderamento

Lecy Garcia enfatiza que a ação faz parte de um programa muito maior, uma vez que a valorização do ser humano é um valor muito forte para a empresa. “Se a Síntese tem como propósito ter equipes de excelência, a base de tudo é o desenvolvimento da consciência crítica, da capacidade de empoderamento desses indivíduos. Eles se tornam multiplicadores dessa postura em casa, na vizinhança e na própria empresa”, assegura. Além dos 175 operários envolvidos na construção do empreendimento “Novo Cristo I”, onde está sendo ministrado o curso, a obra teve um grande impacto socioeconômico nos moradores do loteamento Warislândia. 
 A fim de também contribuir para o desenvolvimento do local onde está inserida, a empresa optou por contratar moradores da área, gerando emprego e renda. Ela cita como exemplo o microempresário Alan Souza, de 29 anos. Há um ano, ele fornece refeições para o canteiro de obras, uma atividade que aumentou significativamente a renda mensal da família. Ele conta que não tinha intenção de trabalhar na área, mas surgiu a oportunidade quando começou a garantir a alimentação do primeiro funcionário, que operava sozinho uma máquina para limpar o terreno. 
Atualmente, ele atende 130 operários, que consomem café da manhã, lanche, almoço e jantar, se for necessário. São mais de 300 unidades vendidas por dia e o crescimento exigiu capacitação. “Tivemos que nos formalizar para ter CNPJ e emitir nota fiscal, tudo direitinho. Por meio da Síntese, conseguimos parceria com a REDES/FIEPA, que nos deu assessoria nesse processo. Já contratamos sete pessoas daqui para nos ajudar com a demanda”, conta. Alan também é o vice-líder comunitário e está participando da turma de iniciação política. Ele considera a ação, por si só, inovadora e uma atitude “surpreendente” por parte dos empresários.
“Compartilhar esse conhecimento é um diferencial para qualquer empresa. Os instrutores estão sendo muito atenciosos e tirando dúvidas, coordenando as discussões. Isso desperta ou faz a gente recuperar o interesse pela política porque muitos estão desacreditados com o poder público, não sabem a quem recorrer para fazer valer os seus direitos”, observa. Como integrante da liderança comunitária, ele admite que o curso está dando uma nova perspectiva sobre a atuação social. No loteamento, a mudança está chegando aos poucos. Segundo Alan, antes não havia nenhum ambiente de lazer e agora eles têm quadra esportiva e pracinha. Os serviços de drenagem e construção do meio-fio também começaram e a expectativa é pela conclusão do asfaltamento. 
Ele compreende que, com uma maior noção política, reproduzida entre os moradores, é possível se articular mais e trabalhar melhor o senso de coletividade. “Temos um problema sério com o acúmulo de lixo nas ruas e fortalecer a cidadania é uma forma de conscientizar sobre o cuidado com o bem coletivo, para cortarmos essa prática, e de cobrar uma coleta de lixo mais eficiente”, exemplifica.
Para o doutor em Ciência Política pela Universidade Federal do Pará, professor Edir Veiga Siqueira, investir em iniciativas de responsabilidade social é o caminho para uma sociedade mais engajada e com formação política mais consistente. “Estes dois elementos [responsabilidade social e consciência política] são essenciais para fortalecer a sociabilidade. A pessoa que é voluntária e realiza atividades altruísticas vai desenvolver algo fundamental para o indivíduo, que é construir uma visão mais global e humana”, analisa. Na visão dele, está se desenhando entre a juventude, ainda em um processo embrionário, um novo ativismo político. 
Este modelo representa uma consciência macro que trabalha com parcerias entre o estado, o setor privado e sociedade civil. “Não dá para ficar esperando pelo poder público. Essa articulação é de suma importância. De fato, acredito que deveriam existir campanhas para que todas as ações de responsabilidade social, seja qual for o eixo, incluíssem noções teóricas sobre cidadania, acesso ao poder, consciência ambiental e outros tópicos similares”, argumenta.

segunda-feira, 25 de julho de 2016

Tecnologia traz desenvolvimento social

*Publicado na página Responsabilidade Social, no jornal O LIBERAL de 06/11/2015

BRENDA PANTOJA
Da Redação

Investir nos produtores locais, pensar alternativas para tratamento de água e esgoto, utilizar os recursos naturais de forma mais consciente. Ações como estas transformam a realidade dos moradores. Mais do que levar as ferramentas e os equipamentos, é preciso levar informação e conhecimento. Essa combinação é a marca das chamadas Tecnologias Sociais (TS), que consistem em soluções relativamente simples, de baixo custo e fácil reaplicabilidade para melhorar demandas essenciais como água potável, alimentação, educação, habitação, saúde, meio ambiente, entre outras.
Quando se fala em tecnologia, muita gente costuma associar o termo aos laboratórios e grandes empresas, com equipamentos caros e computadores de última geração. No entanto, muitos pesquisadores, empresas e organizações da sociedade civil apostam na ciência, na inovação e na qualificação para alavancar o desenvolvimento social em comunidades que precisam de assistência. No município de Bragança, distante cerca de 210 km de Belém, as escamas e couro de peixes, que eram jogados no lixo pelas mãos de Liliane Quadros, 37, e outras artesãs locais, agora transformam-se em biojóia. 
Ela recebe apoio da Casa do Empreendedor, que já formalizou 409 microempreendedores individuais desde janeiro do ano passado e é uma das instituições parceiras da Rede Paraense de Tecnologias Sociais (RTS/PA). Ao desburocratizar o processo para pequenos investidores, que antes precisavam se deslocar para cidades vizinhas ou até mesmo para a capital, os benefícios começam a ser notados. “O primeiro resultado é o aumento na arrecadação do município, por causa dos impostos e taxas, algumas com tarifas especiais para os empreendedores legalizados. E o principal, que é o fomento da economia na região bragantina”, comenta a agente de desenvolvimento local Eliete Sampaio. 
Paneiros artesanais, cestos de guarumã (planta amazônica), panelas de barro e bolsas de fibra da bananeira são alguns exemplos de artesanatos produzidos em Bragança e comunidades próximas. A atividade tem muita força por lá, aquecendo não só a economia, mas também a cultura. Agora, os empreendedores se preparam para a tradicional Festa da Marujada, realizada em dezembro, que atrai muitos turistas e movimenta os negócios do município. “A nossa função, hoje, é chegar onde ninguém chegava. Bragança é rodeada por comunidades, então queremos ir lá naquele artesão que até sabe produzir, mas não sabe como entrar no mercado”, afirma. 
Os workshops e feiras promovidas pela Casa beneficiaram pessoas como Liliane, que envia encomendas de biojóias a Belém, Manaus, Rio de Janeiro e São Paulo. Ela aprendeu a técnica há três anos, por meio de uma oficina da Secretaria de Estado de Pesca. “Depois veio a Casa do Empreendedor, onde aprendi mais sobre produção e me capacitei, o que tem sido uma ótima ajuda para a minha renda”, conta. Ela prefere confeccionar peças únicas e trabalhar com matérias-primas como sementes, o que envolve outros fornecedores locais. “Incentivar os produtores de artesanato daqui é maravilhoso, porque são feitas peças de ótima qualidade. A atuação da Casa estimulou a união de mais de 50 grupos de artesãos, que estão mobilizados para fortalecer e divulgar a nossa arte”, acrescenta, reforçando que o trabalho de enfoque econômico ganhou dimensão social, de valorização da cultura. 

SANITÁRIOS 
Fortalecer o mercado é relevante, na visão de João Pinho, porque a baixa renda é um dos aspectos que influencia o morador a deixar sua comunidade. Outro motivo para essa saída é a má qualidade no abastecimento de água e saneamento precário. “Um dos papeis das tecnologias sociais é dar condições para que as pessoas, se assim desejarem, se mantenham na sua região com capacidade de produzir e ter qualidade de vida, sem ter que migrar e enfrentar dificuldades nos grandes centros”, argumenta. O projeto “Sanitários Ecológicos Secos”, da Caritas Arquidiocesana de Belém e com apoio do Banco da Amazônia, busca proporcionar essas condições aos habitantes da Região das Ilhas, em Belém. Em andamento desde 2006, a iniciativa atende 202 famílias nas Ilhas Jutuba, Urubuoca, Longa, Nova e Paquetá. 
Os moradores recebem um sistema de vasos sanitários artesanais, compostos por três peças básicas: cisterna, vaso e plataforma. Ele permite transformar os dejetos humanos em um forte adubo orgânico, misturando-os com serragem, folhas secas e cal. O material passa seis meses em um processo que não exala odor, não desperdiça água e não contamina a baía do Guajará. Até a urina tem sido reaproveitada, pois misturada com borra de café e exposta ao sol por 15 dias, já se provou um eficiente inseticida. “Temos famílias que estão comercializando esses produtos, algumas venderam a saca de adubo a R$ 400 e uma garrafa de 2 litros de inseticida a R$ 20. Além de preservar o meio ambiente, melhorar as condições sanitárias, ainda gera renda”, destaca o diácono Miguel Pinto, responsável pelo projeto. 
A previsão é que até o fim deste ano, mais 11 unidades de sanitários sejam instalados, alcançando 100% das famílias na Ilha Paquetá. Segundo o diácono, uma das dificuldades é conscientizar a população local sobre a importância de seguir as instruções corretamente, mas a participação dos moradores tem crescido muito. “Também estamos pensando em formas de melhorar a logística, uma vez que cada conjunto para instalação, feito de concreto, pesa cerca de 380 kg. Estamos procurando materiais mais leves. Também investimos em projetos de captação e desinfecção da água, fundamental para melhorar a vida dos ribeirinhos”, complementa. 
Moradora da Ilha de Urubuoca, a pescadora Jacqueline Costa, 50, diz que não tem a menor vontade de voltar a usar os banheiros a céu aberto. “Essa iniciativa foi ótima para a nossa família, melhorou muito a nossa condição sanitária. O adubo produzido rende bastante, ajuda muito e queremos até aumentar nossa plantação. O inseticida funciona muito bem com as formigas”, ressalta. O único problema é a falta de compromisso de muitas famílias, que continuam usando os antigos banheiros, despejando os dejetos na lama e no rio. “Se todos implantassem o sanitário ecológico, seria um lugar com mais higiene. As crianças adoeceriam menos, já que usamos a água do rio para tudo”, observa.

Energia interliga os eixos e garante o sucesso da cadeia produtiva

Projetos como esses estão sendo apresentados e discutidos no III Fórum Paraense de Tecnologias Sociais e na IV Mostra de Tecnologias Sociais, no Campus II da Universidade do Estado do Pará (CCBS/UEPA). Os eventos, que começaram ontem e continuam hoje durante todo o dia, são promovidos pela Secretaria de Estado de Ciência, Tecnologia e Educação Técnica e Tecnológica (Sectet), com apoio da RTS/PA. A entrada é gratuita e aberta ao pú- blico em geral, com palestras, oficinas e exposições. O tema central do Fórum é “Energia e Desenvolvimento Social”, mas também foram realizados quatro workshops sobre “Energia”; “Água e Saneamento”; “Telecomunicações e Inclusão Digital”; e “Emprego e Renda”. 
Para o diretor de Ciência e Tecnologia da Sectet, João Tavares Pinho, todos os eixos estão interligados, mas pensar em alternativas para a energia é de suma importância para qualquer outra ação. “Sem a disponibilidade de energia não há possibilidade de comunica- ção a distância, de atendimento com água tratada de qualidade para uso humano, de aproveitamento em processos produtivos que geram emprego e renda para a população”, pontua. O envolvimento da comunidade é outro fator essencial para garantir o sucesso das tecnologias voltadas ao desenvolvimento social.
Segundo ele, na maioria das vezes, a ideia de mecanismos ou de ajustes em um projeto vem do usuário final, do morador da comunidade onde a TS está sendo implantada. “Interação é a palavra-chave e uma característica importante do Fórum. Se por um lado, a energia é o básico para você fazer qualquer trabalho, o principal objetivo é a geração de emprego e renda, pois assegurando a capacitação e a qualificação da comunidade, o impacto é sentido em toda a cadeia produtiva”, complementa. 
O foco do Grupo de Estudos e Desenvolvimento de Alternativas Energéticas (Gedae), da Universidade Federal do Pará (UFPA), é justamente proporcionar energia aos lugares onde isso ainda é uma deficiência. Em exposição na IV Mostra, eles explicam os sistemas montados pelo grupo e implantados em vários pontos da Amazônia, envolvendo energia eólica, solar e biomassa. “Nossa região tem índices de radiação muito superiores aos lugares da Europa onde a energia solar é melhor utilizada. Temos muito potencial e, de fato, os painéis solares (ou fotovoltaicos) são muito viáveis e já são muito utilizados no Pará”, avalia o bolsista de doutorado Max Nascimento. 
Dentre os projetos voltados para energia, o Barco Solar e Oficina Solar são destaquea, desenvolvidos em parceria entre a Universidade Federal de Santa Catarina e o Gedae. A embarcação sustentável, batizada de “Aurora Amazônica”, foi lançada no mês passado e é composta por dois conversores de corrente contínua para corrente alternada, dois motores elétricos WEG responsáveis pelo sistema de propulsão com sistema de refrigeração à água, banco de baterias com autonomia para cinco horas de navegação e capacidade total de 22 pessoas. No momento de atracação do barco, ele pode ser carregado conectando-se ao terminal elétrico da oficina solar, tendo um banco extra de armazenamento de energia, o que permite que ele possa ser recarregado mesmo nos períodos de vários dias de chuva, comuns na Região Amazônica. 
Expandir esses mecanismos é o desafio. Em várias comunidades, não é novidade usar energia solar para bombear água e para alimentar sistemas autônomos, que por sua vez, podem proporcionar iluminação e o uso de rádios e televisões a locais onde a rede elétrica não chegou. Max citou os municípios de Maracanã, Marapanim e Ponta de Pedras, além do distrito de Mosqueiro, como exemplo de pontos de implantação dessas tecnologias sociais. “Temos projetos de balsas itinerantes com sistemas híbridos de captação de energia, que circulariam pelo Arquipélago do Marajó. Ainda que seja possível comprar kits prontos para captação de energia solar e montagem de sistemas autônomos, é preciso aumentar o investimento nessa área para diminuir os custos e aumentar o alcance”, conclui.

segunda-feira, 20 de junho de 2016

Banco comunitário estimula economia

*Publicado na página Responsabilidade Social, no jornal O LIBERAL de 22/10/2015

BRENDA PANTOJA
Da Redação

Com as compras no caixa, o cliente pergunta: “aceita moqueio?”. O questionamento parece estranho, mas é bastante natural na Baía do Sol, comunidade localizada na Ilha de Mosqueiro, em Belém. O termo é usado para descrever uma técnica indígena de conservação do pescado, mas por lá, o moqueio (M$) é uma moeda social que circula nos estabelecimentos e no Banco Comunitário Tupinambá, que completou seis anos de atuação no local e está transformando a realidade econômica de cerca de oito mil moradores. Com valor equivalente ao do real, o dinheiro complementar é utilizado no pagamento de mercadorias, serviços e contas, cumprindo o importante papel de fortalecer a economia local. Antes da iniciativa, apenas 2% dos moradores compravam internamente. Agora, esse número saltou para 84%. 
Os significativos resultados já renderam várias premiações e a mais recente foi ser um dos 20 projetos selecionados em todo o país no prêmio de “Melhores Práticas Sociais”, da Caixa Econômica Federal. Enquanto a equipe de reportagem conversava com os coordenadores do Instituto Tupinambá, Marivaldo do Vale e Ivoneide Vale, vários eletrodomésticos e aparelhos eletrônicos chegaram para entrega à sede da ONG, como parte do Prêmio Consulado da Mulher de Empreendedorismo Feminino. Eles venceram a disputa com o projeto Ceci, outro braço do instituto, cujo foco é o empoderamento das mulheres, mas que está diretamente ligado ao banco comunitário. 
Para compreender melhor como essa cadeia funciona, Marivaldo explica que o objetivo da moeda social é fazer com que o capital circule no próprio bairro. Estimulando moradores e empreendedores a comprarem de fornecedores locais, é possível aumentar o poder de comercialização, gerando trabalho e renda e, assim, contribuir para o desenvolvimento da comunidade. “Pesquisas que realizamos ao longo dos anos nos mostraram que era de R$ 30 o gasto por pessoa para se deslocar até a Vila de Mosqueiro para realizar as transações bancárias. O banco proporciona uma economia de pelo menos R$ 90 mil por mês, só pelo simples fato dos habitantes não terem que sair da Baía”, afirma. 
Durante a entrevista, a movimentação de clientes era intensa no Banco Tupinambá, pois era dia de pagamento do programa Bolsa Família. Eles firmaram convênio com a Caixa Econômica há três anos e realizam todos os serviços de uma agência comum, o que atualmente significa uma média de três mil atendimentos mensais. Os usuários podem, inclusive, fazer empréstimos com o moqueio. “Antes do Banco Comunitário, as famílias iam receber a Bolsa ou fazer qualquer outro tipo de transação fora da Baía do Sol. Por causa da distância, muitos também almoçavam e faziam as compras na Vila. Pouco desse recurso chegava aqui. Agora, quase 100% da demanda financeira fica na comunidade, dando mais chance de crescimento aos comerciantes daqui”, reforça. 
Dois tipos de empréstimo são praticados pelo Banco: o produtivo, que é negociado em reais e voltado aos empreendedores, e o de consumo, realizado em moqueios para os moradores. Segundo Marivaldo, a moeda social possui um lastro (fundo sem o qual ela não poderia circular na comunidade) de R$ 8 mil, o que possibilita atender com empréstimos em torno de 300 famílias. As mães do Bolsa Família tem um crédito especial de M$ 30 por mês, pagando uma taxa de R$ 0,10 a cada M$ 10. “Muitas delas têm apenas o programa como fonte de renda e a ideia é que não falte o pão na mesa. Elas também recebem aulas de educação financeira, assim como todos os clientes que fazem empréstimo conosco”, informa. 
Os empréstimos de consumo variam entre M$ 30 e M$ 150. Em seis anos, mais de 3.400 empréstimos já foram realizados, movimentando um valor de M$ 144 mil. Apenas três casos de inadimplência foram registrados em todo esse período e Marivaldo acredita que o envolvimento da comunidade no funcionamento do banco contribui para o fortalecimento. “A gente busca fazer eles entenderem que o Banco Tupinambá não é nosso, é de cada um que já se beneficiou com a circulação do moqueio. A comunidade tem crescido muito nos últimos anos, tanto que não está sendo atingida pela crise da mesma forma que o resto da capital”, observa. 
De fato, vários comerciantes e mães de família da região afirmaram ainda não terem sentido os impactos por causa do momento difícil da economia brasileira. Alguns até conseguiram expandir o comércio. “Talvez a crise se reflita mais no recurso que não está vindo, uma vez que a Baía do Sol sempre foi uma comunidade muito desassistida. No entanto, a gente observa que tem várias construções, que o que está aqui consegue alavancar”, avalia Ivoneide. Ela pontua que o crescimento é fruto de um processo de conscientização social dos habitantes. Quando o Instituto começou, ela lembra que não existiam açougues apropriados e só havia uma panificadora, além da maioria dos comerciantes serem informais. 
“Muita gente também não comprava aqui porque os vendedores não aceitavam cartão de crédito. Os produtos eram caros e não tinha muita opção, porque a competitividade era muito baixa. Com base em estudos, pautamos melhorias e fomos vencendo deficiências. A comunidade entendeu e começou a se formalizar”, recorda. De acordo com ela, apostar em quem estava com crédito negativado, concedendo empréstimo social e dando orientações financeiras, também se mostrou uma boa escolha. “Não somos uma casa lotérica, em que as pessoas pagam e não existe relacionamento algum. Somos um banco comunitário, somos moradores locais. A gente acaba sendo assistente social e psicólogo, às vezes, e isso é muito importante”, destaca.
Projeto promove capacitação técnica e produtivas às mulheres
Foi a partir dessa inquietação que surgiu, há três anos, o projeto Ceci Mulheres. Quase 30 mulheres que recebem o Bolsa Família têm crédito no Banco Comunitário e desejam empreender participam da iniciativa. Ivoneide diz que a demanda surgiu logo após o convênio com a Caixa. “Percebemos a vulnerabilidade de muitas mulheres que recebiam o Bolsa conosco, mas estavam em situações de violência doméstica, drogadição e alcoolismo”, detalha. A ideia do Ceci é beneficiar essas mães através de capacitação técnica e produtiva em diversas áreas, inclusão financeira e acompanhamento social. Para ela, ainda que a quantidade de pessoas atendidas pelo projeto pareça pequena, o impacto vai ser grande. O prêmio do Consulado da Mulher garantirá a elas dois anos de acompanhamento técnico.
“Elas nunca mais serão as mesmas. E é por elas que passa a educação da futura geração. Se essas mães não estiverem bem, não criarão bem os seus filhos. A gente quer disseminar na comunidade a ideia do protagonismo. De fazer algo pelo ambiente em que está inserido, sem esperar pelo poder público para mudar a realidade”, declara. No mês que vem, representantes do projeto Ceci viajarão pelo Nordeste para criar a Associação das Mulheres Emancipadas do Programa Bolsa Família entre o Norte e o Nordeste. O objetivo é reunir mulheres, que conseguiram se estabilizar e se tornaram mais independentes, a abrir polos de atendimento e alcançar mais pessoas.
E-DINHEIRO
Outra ação na qual o Instituto Tupinambá está trabalhando é a implantação do e-dinheiro, a moeda social eletrônica que será utilizada por todas as 110 instituições da Rede Brasileira de Bancos Comunitários. A previsão é que ela esteja rodando em todo o país em março do ano que vem. Marivaldo explica que o maior ganho é a mobilidade e que cada banco movimentará a sua moeda própria dentro do fundo que dispõe. “O aplicativo vai permitir que eu movimente o moqueio, por exemplo, para pagar um boleto ou até trocá-lo por reais”, adianta. A ideia já foi apresentada para os clientes do banco e a dona Raimunda da Silva, 51, já está cadastrada.
Ela é proprietária de um mercadinho e se rendeu ao uso do moqueio há quatro anos, depois da insistência dos clientes. “Eles sempre perguntavam se aceitava pagamento em moqueio, até que resolvi aderir e não tive nenhum prejuízo, pelo contrário. Aumentou a fidelidade dos clientes”, conta. Na fila do caixa, ela estava com vários boletos e muitos moqueios em mãos. Raimunda utiliza a moeda social no pagamento de boletos e para facilitar o troco aos clientes. Com as informações sobre empreendedorismo, ela tem gerenciado melhor os negócios e conseguiu aumentar o espaço do comércio, além de ter comprado um freezer novo. Valdenira Villaça, 27, é vendedora em um armarinho e garante que o moqueio circula como uma moeda normal na Baía do Sol.
“É uma moeda totalmente comum na nossa rotina. Usamos pra comprar desde crédito pra celular até açaí com farinha, remédios e tudo mais. Alguns estabelecimentos até dão 5% de desconto para quem pagar em moqueio. Tudo isso faz o dinheiro circular aqui”, comenta. Ela, que tem duas filhas e recebe o Bolsa Família, também faz parte do projeto Ceci, não tem dúvidas do retorno positivo que tem com os projetos. “Faço os empréstimos mensais de M$ 30, é um valor que me ajuda bastante. E com os treinamentos de educação financeira, mudou a minha visão sobre o assunto. Antes, achava que só saindo daqui poderia ter uma renda, mas hoje entendo que posso investir aqui mesmo”, diz.
A universitária Valéria Barbosa, 31, acredita que o projeto merece mais visibilidade, pois tem ajudado muitos moradores da área. “A aceitação da moeda é muito boa, as pessoas se sentem seguras utilizando o moqueio e o comércio local tem se desenvolvido bastante com esse fortalecimento, o que resulta numa melhor qualidade de vida para todos”, pondera.