terça-feira, 12 de março de 2013

Ayvu Rapyta

 *Publicado na revista Amazônia Viva, nº 19, março/2013

     “Se esta mata fosse minha / eu não deixava derrubar / Se cortarem todas as árvores / onde é que os pássaros vão morar?”. É com os trechos do poema Paraíso, de José Paulo Paes, que o professor de literatura Paulo Demétrio, 41, arranca sorrisos do público reunido no Jardim Botânico Bosque Rodrigues Alves, em Belém, para mais uma contação de histórias.
    Contar histórias é uma arte que alguns dominam por meio da escrita ou da fotografia, mas há aqueles que utilizam o próprio corpo. Mãos, pés, olhos e boca empenhados em transmitir ao público as emoções contidas em um enredo. Os quase anônimos contadores de histórias doam seu tempo e esforço pelo puro prazer de compartilhar, junto aos ouvintes, as alegrias e surpresas de uma trama.
Contação de histórias

     Dividir boas sensações é uma das maiores motivações do grupo de contadores de histórias Ayvu Rapyta, criado em 2008. O nome deriva de uma expressão indígena cujo significado principal é “palavra habitada”. Uma característica é comum a todos os treze membros da equipe e foi o que impulsionou a ideia: o amor pela literatura.
     Paulo Demétrio é um dos integrantes mais antigos do grupo, faz questão de dizer que a contação “é uma brincadeira séria”. Apesar de ser vista por muitos como algo somente lúdico, ele defende fortemente os benefícios de uma história bem contada. 
     “A intenção também é compartilhar sabedoria, através de estudos e pesquisas sobre literatura oral e escrita”, afirma. Dentre os proveitos resultantes da prática, o primordial é a formação de leitores, que estimula a criticidade e ajuda na formação de cidadãos mais conscientes do seu papel na sociedade. 
     A técnica em enfermagem Gilvanete Situba, 41 anos, fala sobre os recursos utilizados pelo grupo para alcançar seus objetivos. A união de vários elementos cênicos, musicais e corporais faz parte de uma estratégia. “Não se trata de representação e nem de interpretação. A performance que realizamos tem o propósito de despertar encantamento”, explica.

Deixe um sorriso na caixa
     O simples ato da escuta atiça o desejo pela leitura e é nisso que o contador de histórias aposta para divulgar a literatura, não só amazônica e brasileira, mas universal. Nas rodas de contação o tempo aparece como mero coadjuvante. O que importa são os risos, o suspense e o desfecho tão aguardado. Viver em uma região como a nossa é um prato cheio para quem gosta de ouvir e contar boas histórias.
     A Amazônia têm tantos mitos impregnados pelas florestas e rios que é praticamente impossível resistir a apurar os ouvidos quando alguém começa a narrar um causo. Através das lendas o amazônida construiu toda uma cultura de misticismo, crendices, fé e até mesmo de respeito pela natureza.
     Gilvanete acredita que ao mesclar histórias e poemas de autores paraenses como Walcyr Monteiro, Juraci Siqueira e Alfredo Garcia, a nossa identidade é valorizada. Ela lembra ainda que a oralidade é um dos traços fortes da cultura local.
     Ambientados em uma região de natureza exuberante, os contadores não conseguiriam nem se quisessem deixar de lado a questão ambiental. As matas e os furos de igarapé frequentemente são escolhidos como cenários das histórias que, geralmente, são protagonizadas por animais. Quem explora este ponto é a pedagoga Joana Martins, 48 anos, participante do Ayvu desde o início do grupo. “Ao utilizar elementos do meio ambiente queremos promover uma reflexão e despertar não só o cuidado com a natureza, através da valorização do que é nosso, mas com o próximo também”, completa.
      Para ela, uma das maiores alegrias em integrar o Ayvu e poder levar a “palavra em todas as suas formas para faixas etárias muito diversas, com um repertório muito grande”. A dedicação em cumprir esse papel é um dos fortes do grupo, segundo Joana.

História contada na roupa
            
      A palavra rompe barreiras até mesmo físicas, conforme comprova o professor Ronaldo Alex de Carvalho, 48 anos, membro do grupo e deficiente visual. Dividido entre a vontade de compartilhar histórias e a timidez, o envolvimento com as narrativas foi maior. Desde então, Ronaldo já se apresentou, junto com o grupo, para crianças com deficiência visual e auditiva, e precisou usar diferentes recursos como instrumentos musicais ou a Língua Brasileira de Sinais (Libras). Ele conta, emocionado, que o retorno sempre foi muito positivo.
     É senso comum entre os contadores do Ayvu que é impossível mensurar a dimensão que uma história pode alcançar. “A mesma história pode ser narrada de várias formas diferentes, uma nova abordagem pode surgir. Mas é muito gratificante sentir que tocamos o público de alguma forma”, confessa o também professor Edinei Dias, 41 anos. A repercussão que a palavra encontra comprova, para ele, que a força reside na própria história e que ela não acaba na roda de contação.
    Paulo Demétrio complementa a ideia de Edinei e enumera quatro fatores necessários para conseguir esse efeito no público. “É fundamental que o contador acredite na narrativa, ame o texto, seja encantado pela história e esteja emocionado pela mesma”, recomenda.
Sombrinha literária
     Em seis anos de Ayvu, o reconhecimento do trabalho realizado é visível na divulgação boca-a-boca, crescimento do público que comparece aos eventos e aumento dos convites. Com o objetivo de conseguir cumprir vários compromissos e contribuir em praças públicas, escolas, entre outros espaços, as principais dificuldades do grupo são a disponibilidade do tempo, por ser um trabalho essencialmente voluntário, e a captação de recursos para estruturar o grupo. Aquisição de livros, figurino, oficinas de expressão corporal e técnica vocal são alguns dos investimentos.
      O planejamento do grupo para este ano inclui o 3º Encontro de Contadores de Histórias, às 10h do dia 17 de março, no anfiteatro da Praça da República, em comemoração ao Dia do Contador de Histórias comemorado em 20 de março. Mesas redondas com entrada gratuita também estão previstas e a primeira está marcada para 14 de março, no auditório do colégio Pedro Amazonas Pedroso, com o tema “Motivos, variações e aproximações entre literatura oral e escrita”, às 17h.
     “Todos os amantes da palavra estão convidados a participar dos nossos eventos. São pessoas de 8 a 80 anos que se reúnem para ouvir histórias de contadores entre 17 e 77 anos”, brinca Gilvanete. Ela se refere a integrante mais velha, a dona Eny Souza, que mesmo aposentada não abandona o costume de menina. “Cresci no Marajó e participo de rodas de história desde que me entendo por gente. Nos reuníamos para ouvir nossa avó contar os casos e o hábito cresceu comigo”, recorda. Dona Eny é a prova de que uma roda de contação de histórias pode – e deve – ser apreciada por pessoas de todas as idades, pois a fantasia não distingue a criança do idoso.

De geração para geração